quinta-feira, 5 de março de 2020

Fernando Schüler* - Madison tinha razão

- Folha de S. Paulo

Há uma agenda estrutural de reformas no Congresso, e é nela que devemos focar nossa atenção

A semana do Carnaval foi agitada. Bolsonaro distribuiu aquele vídeo pelo WhatsApp, e a república quase caiu. A república digital, bem entendido. Do vídeo ninguém mais se lembra, mas consta que inspirou paródias impagáveis de filmes com super-heróis que circulam na internet.

Muita gente achou que o fim havia chegado. Li de uma jornalista que “o golpe estava em curso”. O texto era longo, confesso que tive preguiça de ler até o fim, mas parecia ser um “alerta ao país”. Fui na janela temeroso de ver tanques na rua, mas nada. Tudo que vi, ao longe, foi um bloquinho de Carnaval um pouco cansado, já no fim da festa.

Na semana seguinte, governo e Legislativo fecham acordo em torno do Orçamento impositivo, confirmam-se os vetos de Bolsonaro, e um certo tédio volta a reinar em nosso mundo político. Ao menos por alguns dias, imagino. Até a próxima frase mal-humorada do general Heleno, em algum coquetel de Brasília.

Tudo isso parece engraçado, mas é o novo feijão com arroz das nossas democracias. A política na era da irrelevância. Voltei a ler Baudrillard e suas teses esquisitas sobre os males do excesso de informação e o assalto do mundo virtual sobre a realidade. Baudrillard profetizou a nós todos.

Por vezes, em meio ao barulho, nos deparamos com um sopro de bom senso. Foi o que senti lendo a entrevista do brasilianista David Samuels sobre o nosso momento político e a convocação para as manifestações do dia 15.

Samuels parece surpreso com a agitação toda em torno do assunto. “É uma estratégia que cada presidente pode empregar, é da natureza do cargo. Principalmente um outsider vai fazer isso”. Ele lembra o trabalho de Samuel Kernell sobre a estratégia “going public”, normais em grandes democracias, como a americana.

O presidente sabe que ocupa uma posição única e joga para mobilizar a opinião pública e avançar pautas de seu interesse. Na tradição autoritária latino-americana, há evidentes riscos nessa estratégia. Vale observar o alerta de Madison, em “O Federalista”: as paixões, e não a razão, tendem a comandar o jogo.

No caso de Bolsonaro, melhor seria chamar a estratégia de “going digital”. Ele dispensa instituições de mediação e fala direto com o “homem-facebook”. É uma atualização do homem-massa, descrito por Ortega Y Gasset, mas com um poder de ação muito maior. De vez em quando ele vai para a rua, de modo caótico, sem que se saiba exatamente por quais razões.

É o caso do dia 15. Quais são exatamente suas razões? O governo já fez o acordo com o Congresso, a PEC dos Fundos passou na CCJ do Senado. As coisas só não andam mais rápido (caso das reformas administrativa e tributária) porque ninguém sabe qual é a proposta do governo, correto?

O que irá resultar de todas essas manifestações?

Nada. Uma multidão sairá às ruas, com todo o direito, e no dia seguinte a algazarra digital discutirá se tudo foi um sucesso ou um imenso fracasso. Governistas e oposicionistas dirão coisas opostas, e em alguns dias tudo será esquecido.

Do mesmo jeito que esquecemos aquele domingo de maio do ano passado, em que essas mesmas multidões desfilaram Brasil afora.

O desafio do Brasil continua o mesmo. Temos um presidente errático cujo projeto para o país resume-se a uma agenda econômica. Não haverá coalizão majoritária no Congresso, de modo que a melhor aposta é no arranjo de corresponsabilidade.

Paulo Guedes disse, em tom emocional, que “temos 15 semanas para mudar o Brasil”. Na sua agenda constam temas cruciais da agenda fiscal, como a PEC Emergencial, e da agenda estrutural, como o novo marco do saneamento básico. Nosso problema não é a falta de agenda.

Guedes sugeriu que os movimentos de rua apoiem, quem sabe no dia 15, essa agenda de reformas, em vez de se dedicarem a uma guerra política imaginária.

Acho difícil isso acontecer. Temas difíceis que fazem um país andar para frente raramente despertam a paixão das ruas. Madison sabia disso.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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