- Valor Econômico
Brasil pode entrar em novas cadeias de suprimento, mas vai também enfrentar o desafio de novas barreiras sanitárias e fitossanitárias
A pandemia de covid-19 provoca um colapso no comércio global bem mais forte do que crises no passado. Países que fazem mais da metade da produção mundial estão em “lockdown”, com a atividade praticamente paralisada. Nas próximas semanas, ficará mais evidente o desarranjo de cadeias globais de valor. Uma ilustração dos problemas de logística ocorre com tripulações de aviões de cargas, que em alguns países não podem nem sequer descer do avião ou têm de ficar em quarentena. Para ter uma ideia, a percentagem de valor agregado estrangeiro nas exportações de eletrônicos é de cerca de 10% nos EUA, 25% na China, mais de 30% na Coreia do Sul, superior a 40% em Cingapura e mais de 50% no México, Malásia e Vietnã.
A crise atual vai acelerar uma reconfiguração no comércio mundial, com uma mudança brutal nos fluxos de trocas. A primeira tendência, mais óbvia, e que vai se consolidar, é a busca das grandes empresas em diversificar suas cadeias de suprimento. Ficou claro que, numa situação de pandemia, tsumani, terremoto, inundações, se uma companhia ou país é dependente de fornecedor de um só país ou região pode enfrentar um embargo comercial. Portanto, a diversificação de riscos, que já tinha começado quando se iniciou a guerra comercial entre os EUA e a China, agora tende a se acelerar, ao custo de preço maior dos produtos. Não é que uma companhia vá cortar fonte de suprimento na China e em outros óbvios produtores. Mas vai alargar o campo dos fornecedores para ter mais segurança no futuro.
A segunda tendência é de acelerar também a volta para o território nacional da fabricação de produção que os governos consideram de setores essenciais. Cada um vai determinar o que isso significa. A partir da pandemia, vários países têm sinalizado que vão querer ter capacidade de produzir tudo que é equipamento médico-hospitalar essencial. Os europeus constatam, por exemplo, que 80% das matérias-primas para os componentes ativos de um remédio vêm da China ou da Ásia, e que isso pode colocar um problema de independência sanitária no médio e longo prazos. Os EUA, com Donald Trump, já vêm na direção de retornar produção para casa e apontaram previamente aço, alumínio e até automóveis como de segurança nacional, durante a guerra comercial com os chineses. O protecionismo tende a aumentar também com mais países proibindo investimentos estrangeiros em áreas consideradas estratégicas como telecomunicações, aeronáutica e outros chamados campeões nacionais.
Esse cenário é acompanhado com preocupação por Roberto Azevêdo, o diretor-geral da OMC. Ele repete que busca de autossuficiência causa perdas para todos, porque introduz ineficiência na cadeia produtiva nacional e global com custo alto para a sociedade.
Depois que a pandemia passar, outra questão será como desmontar em algum momento o arsenal de subsídios que atualmente socorre empresas e que tem potencial de distorcer a concorrência global. Os países ocidentais mais ricos já anunciaram pacotes de mais de US$ 8 trilhões na forma de empréstimos, garantias públicas e ajuda para as companhias mais vulneráveis e para preservar empregos. Uma constatação é de que, quando vem uma grande crise, surgem também algumas medidas que podem extrapolar. É o que certos negociadores chamam de “doenças oportunistas”, em referência a doenças que se aproveitam de uma fraqueza no organismo para atacar. No comércio, basta ver a rapidez com que setores da União Europeia (UE) usam o pretexto da pandemia para defender aumento de subsídios para que o velho continente volte a ser uma grande potência agrícola, a fim de não correr risco de insuficiência de alimentos. Nos EUA, Donald Trump, que enfrenta a eleição presidencial em novembro, prometeu mais generosidade de US$ 16 bilhões a agricultores para manter a produção estável.
Muita coisa vai mudar na área de serviços com a adoção de novas tecnologias. Comércio eletrônico, pagamento digital e trabalho remoto tiveram impulso forte na atual crise, como nota Azevêdo. Mais investimentos em tecnologia vão permitir o fornecimento de mais serviços a distância. O diretor-geral da OMC exemplifica com a evolução acelerada de plataformas virtuais que pareciam destinadas a chat social e agora são usadas profissionalmente, como o Zoom.
Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC, chama atenção para o que chama de passagem do “protecionismo” para a “precaução”. Ou seja, não são mais as empresas que os governos vão proteger com tarifas de importação contra a concorrência internacional, e sim os cidadãos e consumidores que serão protegidos contra diferentes riscos. Os padrões e normas de qualidade dos produtos vão substituir cada vez mais as alíquotas.
Na verdade, esse é um debate que vem de um bom tempo, envolvendo o princípio de precaução impulsionado pela UE. Na teoria, quando um produto entra no mercado e o governo local quer proibi-lo, precisa mostrar base científica de que prejudica a saúde de seus consumidores e, portanto, a barreira se justifica. Pelo princípio de precaução, porém, um país poderia proibir um produto novo sem saber se ele faz bem ou mal ao consumidor até que o exportador apresente a prova de que é seguro. Ou seja, inverte-se o ônus da prova.
Os europeus têm normas mais duras que as internacionais há vários anos e usam isso como protecionismo na avaliação generalizada dos países que negociam com eles. A questão de importância para o Brasil e outros exportadores agrícolas é como atrair a UE, os EUA, a China e o Japão para um acordo global que harmonize as medidas por detrás das fronteiras que se tornarão mais relevantes do que antes da pandemia atual. Lamy prevê que “com certeza ninguém no mundo vai decidir baixar seu nível de precaução após a crise da covid-19”.
Para o Brasil, o cenário pós-pandemia traz potencial de entrar em cadeias de suprimento com a diversificação que ocorrerá. Mas eleva também os desafios com a facilidade com que barreiras sanitárias e fitossanitárias continuarão a ser adotadas.
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