- O Globo
Curva do debate público brasileiro se achata
Elementos do enredo farsesco e alegorias para um arco trágico: crise sem precedentes; depressão econômica a caminho; “imaginação totalitária” (conforme Francisco Razzo) imperando; jacobinistas de repente apaixonados por garantias constitucionais; súbitos defensores do direito de ir e vir protestando —farreando o carnaval da vida banalizada — com caixões cenográficos nas avenidas; presidente da República, com plano de saúde, investindo no (convidando ao) rolê; povo, sem plano de saúde, saindo às ruas para trombar com o pico do contágio e, talvez, tombar em caixões de verdade; governador, em defesa da vida (e para antagonizar com um fã de Brilhante Ustra), ameaçando prender quem lhe desafie a norma e ouse circular livremente.
Compõe a trama também — glória do populismo — a luta de classes, forjada artificialmente pelo bolsonarismo, ante uma pandemia. De um lado, o pobre que quer comida — pobre defendido por (virada dramática) Jair Bolsonaro, aquele outrora contrário ao Bolsa Família, doravante preocupado com o pão na mesa do desvalido. De outro, o rico — sai da bolha!— que quer o pobre em casa, passando fome, morrendo de fome, mas sem lhe transmitir doença. Importante realçar esta marca de personalidade do abastado egoísta: se mostrar preocupação com o colapso do SUS, estará mentindo. Relevante também — para a correta caracterização das nuances — que esse alienado não seja confundido com o empreendedor dinâmico que quer o povo no trem, no rumo do batente, imunizando-se enquanto trabalha para gerar riqueza.
Hora de apresentar os artistas do espetáculo: o vírus chinês (comunista, outrora gripezinha), o isolamento social caviar (luxo elitista, coisa de governador almofadinha) e o remédio do Bolsonaro, a cloroquina (ainda carente de chancela científica, mas já largamente ministrada para a exploração personalista) — contra cuja eficácia os céticos torcem porque seu sucesso seria uma vitória do presidente.
Todo esse elenco de bárbaros a se bater sob a discreta direção da mentalidade autoritária, aquela graças à qual — sem percebermos — passamos a considerar normal, até mesmo bom, que um irresponsável autoritário eleito seja tutelado por generais; ou que, como resposta à sociopatia de um governante, outro fale em encarcerar os que furarem uma quarentena. (Sim, sei que há base jurídica no Código Penal; da mesma forma que, na Constituição, estão previstos os recursos aos estados de defesa e de sítio.)
Tratemos, portanto, da trilha sonora. Democratas — se democratas forem — devem atentar à música que põem para tocar em tempos de exceção. Convém não se esquecer do guarda da esquina. O concurso por quem pode mais em compasso excepcional convida ao baile dançarinos que não se deveria querer no salão. Ou, como explicaria Bolsonaro (em idioma próprio), “para toda ação desproporcional a reação também é forte.”
Falemos sobre iluminação — que não equivale a luzes. Todo esse plantel de autocratas por vocação (ou ignorância) e de golpistas em potencial a encenar tamanha comédia no mais absoluto escuro — isto enquanto o Ministério da Saúde do doutor Mandetta (o herói por contraste, homem modesto cuja simples razoabilidade, por oposição ao chefe, erigiu um Oswaldo Cruz) continuar incapaz de responder a este breve conjunto de perguntas: quantos testes já foram aplicados no Brasil?; quantos são aplicados diariamente?; qual o critério para aplicação?
Assim se achata — pressionada pela miséria moral sanitária — a curva do debate público brasileiro. Politizamos vírus, reclusão e medicamento — essa baixaria toda enquanto tateamos no breu. É o que chamo de as pestes dentro da peste. Uma delas — talvez política de Estado: a subnotificação; aquela que, associada à quarentena, é prece ao autoritarismo. Prudência com a valsa, senhores democratas. Decretar isolamento social sem promover testes em massa — por meio dos quais projetar algum futuro relaxamento nas restrições — é concentrar poder excepcional, por tempo indeterminado, na mão do Estado. Há quem aprecie o clima.
A chaga da subnotificação; a mesma que abaliza o presidente quando diz que o pior já terá passado. Subnotificação que — até a imposição da realidade — alicerçará o discurso irresponsável de que a reação à Covid-19 era mesmo histérica e o bicho, não tão feio. Até lá, o bolsonarismo aloprará — cantará vitória — se valendo da ilusão estatística e se apegando a princípios que sempre desprezou (os constitucionais, por exemplo) para empurrar as gentes à normalidade; e a normalidade de uma pandemia é caos e cadáveres.
Atenção, senhores democratas: não mordam a isca. Bolsonaro — cuja compreensão de liberdade contempla ter torturador por ídolo — apenas instrumentaliza, como provocação, o direito fundamental de ir e vir. Não o queiram chamar para uma corrida pelo posto de quem pode lançar mais mão de canetadas discricionárias.
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