- O Globo
A sociedade organiza frentes para impedir que a violação ao estado democrático de direito avance
O reduzido grupo que confronta a Ciência, estatísticas e a realidade representada por 27 mil mortos é o mesmo que rejeita a democracia, em exibições de negacionismo constitucional. Enfrentamos a maior crise sanitária da humanidade, submetidos a provocações no ambiente tóxico das redes e a crises políticas, potencializadas por quem deveria zelar pelo bem comum. Mal temos direito à tristeza e ao luto. Somos sistematicamente bombardeados por ameaças e hashtags que não matam, como o vírus, mas nos assombram, em tensão permanente, exigindo esforço para resistir à insanidade.
O que se viu, na reunião de ministros, em meio a esse cenário de sofrimento, além das violações aos princípios constitucionais da impessoalidade e moralidade, foi a absoluta indiferença para com a dor alheia. Oportunismo de baixo calão, quebra de decoro de empatia, e um silêncio eloquente e revelador do descaso para com o caos que assola o país. Nenhum projeto de prevenção ou tratamento. Nenhuma orientação ou informação. Nenhuma palavra para as famílias dos mortos, e para os que esperam vagas em hospitais e UTIs. Seguimos sem um ministro da Saúde, que se responsabilize pela condução da crise.
Se as instituições e os controles democráticos não funcionassem, não incomodariam tanto, a ponto de um ministro sugerir, pasmem, que se aproveitasse a oportunidade da tragédia para não se submeter a eles.
Democracia é matéria viva, e deve ser cuidada cotidianamente. Há limites objetivos para o retrocesso. Ainda que o tempo do controle institucional não seja tão imediato quanto as postagens nas redes sociais, o Congresso, o Judiciário e a imprensa têm impedido o avanço do atraso.
Além disso, a sociedade reage, organizando frentes para impedir que a violação ao estado democrático de direito avance, como no caso do Manifesto Jurídico, assinado por centenas de profissionais, de diferentes matizes políticas e ideológicas, que se comprometem a dar um basta à intolerância e a estancar o arbítrio.
Grande parte da angústia, nesse clima de instabilidade, decorre do confinamento a que estamos submetidos, o que leva à falsa percepção de paralisia. Inevitável a associação com a “Alegoria da caverna”, descrita por Platão:
“Acorrentados em uma caverna, de costas para a entrada, os prisioneiros só conseguem olhar para a parede, na qual monstros, projetados em sombras pelas chamas de uma fogueira, assombram e se movimentam. Ignoram a realidade exterior, e a única percepção da vida vem em forma de vultos. Nem imaginam que exista um mundo real.”
Um dos prisioneiros se solta, e caminha para a entrada da caverna. Exposto à liberdade, com dificuldades para se mover e para se acostumar com a luz, paulatinamente se adapta, e se surpreende com a vastidão do mundo e com a constatação de que as sombras projetadas, que tanto medo impunham, nada mais eram do que sombras de pessoas, plantas e animais.
Ao retornar à escuridão, na tentativa de explicar a descoberta aos demais, é ridicularizado, pois seus companheiros só acreditam na realidade que enxergam. Insistir na luz pode até mesmo levá-lo à morte, por aqueles que rejeitam qualquer acesso ao conhecimento.
Ao contrário dos prisioneiros de Platão, não estamos acorrentados. Escolhemos o confinamento, como ato de cuidado, responsabilidade com os mais vulneráveis e, principalmente, como afirmação da vida. Não devemos nos contaminar pelas sombras na parede. As manifestações de ódio e arbítrio, a estratégia de empurrar a democracia para as cordas, se apropriando de palavras e conceitos que significam o oposto do que eles representam, só podem ser enfrentadas com racionalidade e fortalecimento institucional, ferramentas essenciais para a saúde mental e para a cidadania.
A caverna compulsória na qual nos encontramos não deve nublar a capacidade de avaliação do mundo real. Pensar é ato de sobrevivência. É para que as instituições continuem funcionando que temos que prestigiá-las. Fora da política, da Justiça e da democracia, não há saída.
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