- Folha de S. Paulo
Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página
Na bandeira, substitua-se o lema positivista “Ordem e Progresso” por “Não repara a bagunça”, a inevitável saudação brasileira às visitas, escrita assim mesmo, do jeito bagunçado que as pessoas falam. A sugestão irônica, triste e afetuosa, circulava entre nós, nos tempos de faculdade. Hoje, 40 anos depois, a crise do coronavírus revela sua atualidade.
Um presidente negacionista decidiu que a Covid é “uma gripezinha”, recusou-se a organizar o respaldo econômico à emergência sanitária, fechou o Ministério da Saúde, engajou-se em atos de sabotagem das regras de distanciamento social.
O STF reagiu transformando o país numa confederação de 27 entidades territoriais mais ou menos independentes. Na ausência de coordenação nacional, governadores, prefeitos e até juízes intrometidos costuraram uma colcha de retalhos de medidas sanitárias incongruentes.
A bagunça esvaziou menos as ruas que o sentido das palavras. Do Maranhão ao Ceará, quarentenas parciais ganharam o nome de “lockdown”.
O governo paulista anunciou uma “quarentena inteligente”, confessando involuntariamente que experimentamos dez semanas de quarentena burra. Na etapa da burrice, fechou-se às pressas a economia de centenas de cidades do interior quase livres da epidemia. Na da inteligência, essas áreas serão desconfinadas, justamente na hora da chegada do vírus.
A bagunça é, às vezes, cálculo eleitoral. O prefeito paulistano, um administrador que executa antes para depois planejar, o gênio de bloqueios viários e megarrodízios, clamou por um “lockdown” imposto pelo governador, sobre quem recairia o peso do fracasso, antes de girar 180 graus, temendo a paralisação de obras de apelo eleitoral.
Na capital paulista, ninguém pode andar em parques, atividade saudável e segura, mas todos já podem visitar os shoppings. No Rio, cidade que declina sem elegância, as praias continuam proibidas, mas o prefeito puro e santo excetuou as igrejas, permitindo aglomerações nos templos. Há jornalistas que culpam o povo pela dissolução das quarentenas.
Às vezes, a bagunça é método. No estado do Rio, sob um governador-juiz que prega a eliminação extrajudicial de suspeitos, a corrupção adaptou-se celeremente ao cenário epidemiológico. Seguindo a clássica receita de autoajuda dos investidores, de converter crises em oportunidades, firmaram-se contratos fraudulentos para a construção de hospitais de campanha.
Saúde antes de tudo. O extinto Ministério da Saúde, reduzido à condição de acampamento militar, foi colonizado por curandeiros charlatães. Curvado às ordens presidenciais, ele recomenda o uso indiscriminado da cloroquina em pacientes de Covid, contrariando as conclusões de investigações científicas abrangentes. Às vezes, a bagunça é crime.
Não damos sopa para o azar. Os países europeus, bagunceiros, só exigem o uso de máscara em lugares fechados. No Brasil, somos ordeiros, rígidos, implacáveis: a Câmara estendeu a obrigação aos espaços abertos. Obedientes, as pessoas percorrem as calçadas com o apetrecho na testa ou no pescoço, manuseando-o irrestritamente, enquanto as máscaras dos motoqueiros se cobrem de películas de fuligem. Fazemos leis para chinês ver.
Nunca relaxamos. O fechamento geral de escolas é medida de eficácia improvável no combate ao coronavírus, concluiu um estudo publicado pela Lancet, revista médica de referência.
Na Europa, a reabertura escolar figura entre as medidas pioneiras da flexibilização, pois a longa interrupção atinge devastadoramente famílias e alunos pobres. Mas, por aqui, isso foi relegado ao epílogo do cronograma das autoridades. “Vire-se, povinho!” —eis a mensagem de governantes tementes a Deus ou à “Ciência”.
Nossa epidemia seguirá crepitando, enquanto o mundo vira uma página. Temos tempo para substituir o lema que atravessa a esfera azul celeste da bandeira tão amada.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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