- O Estado de S.Paulo
O tempo nos livrará da angústia da pandemia e da insegurança política que suportamos
Repito a mim mesmo um verso de um poema do Augusto Meyer, gaúcho como eu que conheci pelas mãos de Manuel Bandeira em 1958, no Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro. Tornamo-nos amigos então, ele encantado pelo fato de eu declamar alguns de seus poemas. Em especial aquele verso que, em glosa, agora repito assim: masco e remasco a minha ansiedade, minha angústia chewing gum.
Começo a escrever estas linhas também a partir do Cântico Negro, do José Régio: “não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”. O ímpeto de escrever a respeito de mim mesmo e da superposição do passado, do presente e do futuro toma conta de mim. Múltiplo enquanto ser humano, fui membro do Poder Judiciário, voltando a atuar como advogado desde 2010. Hoje produzo livros jurídicos e literatura de verdade, retornando à fotografia. Muitos eu mesmo no passado e no presente – hoje, aqui, agora – convictos de que o tempo é convenção.
Escrevi a respeito disso no meu A(s) Mulher(es) que Eu Amo, afirmando que os acontecimentos não são encadeados, não se seguem uns aos outros. Menos ainda consequentes. Nada impede que o antes ocorra depois e um estalar de dedos seja mais longo do que a eternidade. No quadro da literatura que tento praticar, um sujeito inventou um descompressor do tempo, mexeu no lugar errado e pum! Entramos na Antiguidade e passamos a ser uma civilização sem pré-história. Começamos pela metade. Dei-me conta de que se aumentarmos cem vezes, exatamente na mesma proporção, o tamanho de todas as coisas que enxergamos, nada será diferente do que é. Tudo exatamente na mesma proporção. Objetos, pessoas, horizontes, nós mesmos. Multipliquem por mil ou os dividam por um milhão e tudo será exatamente igual ao que temos aqui, agora.
Realmente estou confuso. Não sei a respeito do que escrever, pois o tempo é uma convenção e – aprendi ouvindo o Lulu Santos – nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Pois tudo passa, tudo sempre passará. O velho Heráclito me ensinou ser impossível pisarmos duas vezes no mesmo rio. Depois Hegel, ao ensinar que a História não se repete e outro autor, ao escrever sobre o 18 Brumário.
Ainda que seja assim, manifestações do nosso Poder Executivo hoje me perturbam, de sorte que – sorte ou azar? – não sei o quê, do que falar, escrever...
Aqui mesmo, na edição de 2 de abril passado, afirmei que a pandemia que hoje suportamos impacta sobre o todo do qual somos meras partículas. Política é a atuação dos que se ocupam dos assuntos públicos, no quadro em que estão inseridas relações institucionais e sociais. A suposição de que se possa instalar acirramento entre essas relações é expressiva de ignorância ou de más intenções. Atuação que, na primeira hipótese, conduz a conflitos entre instituições políticas e o todo social. Conflitos que nos levam àquelas palavras de Jesus: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Na segunda hipótese, expressiva de más intenções. Os graves momentos que hoje vivemos trazem de volta um poema de Álvaro Moreyra, no qual ele afirma que palavras não dizem nada, melhor é mesmo calar. Nada mesmo a dizer a respeito da atuação de quem se dispõe a agredir o todo a fim de obter vantagens pessoais.
São terríveis os momentos que hoje vivemos. Além da pandemia que assola o mundo em seu todo, habitamos um país onde os juízes dos nossos tribunais são agredidos aos gritos pelas ruas. Conheci Alexandre de Moraes na Faculdade de Direito da USP. Ele e o Toffoli eram da mesma turma. Eu – mais velho que eles – professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Anos depois, início do ano 2000, Alexandre tornou-se meu colega, docente lá nas Arcadas. Quando chegou ao STF eu já me aposentara por conta da idade, mas esses três vínculos nos unem para sempre. Um homem correto, praticante de prudência – a phronesis aristotélica – ao decidir corretamente, no quadro da Constituição e das leis. A conduta de Alexandre como magistrado traz a mim esperança e certeza de que o Tempo nos livrará não apenas da angústia decorrente da pandemia, mas também da insegurança política que nos dias que correm suportamos.
Felizmente, no entanto, a angústia dos dias de hoje é superada por momentos de alegria, quais os que me trouxeram dois professores das velhas Arcadas do Largo de São Francisco que haviam rompido a amizade comigo e há dois ou três dias me convocaram para a ela voltarmos.
A música e a poesia me acompanham, por conta do que vou andar por aí, pra ver se encontro a paz que perdi! De repente soa em meus ouvidos o último verso de um poema do meu amigo Manuel Bandeira, Pneumotorax: a única coisa a fazer é tocar um tango argentino!
Os que por aí estão deveriam ouvir Sócrates: só sei que nada sei! Embora no fundo de mim mesmo eu suponha que Sócrates hoje se referiria a outros, assim: só sei que eles nada sabem!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal
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