• Bolsonaro decide multiplicar os riscos à vida na pandemia – Editorial | O Globo
Ao confrontar a Ciência, presidente assume responsabilidade histórica pela politização da epidemia
Quando o ortopedista Luiz Henrique Mandetta foi demitido do Ministério da Saúde, o Brasil contava duas mil mortes na pandemia do novo coronavírus. Ontem, o oncologista Nelson Teich escolheu se demitir do comando do ministério. A sexta-feira terminou com quase 15 mil mortos na contagem governamental.
Em apenas 27 dias o país teve dois ministros da Saúde. Nesse período viu aumentar em 650% o número de mortes e consolidou indesejável liderança em disseminação da doença na América Latina. É a dimensão trágica da propagação de um vírus, para o qual o mundo ainda não desenvolveu formas de controle, vacina ou tratamento eficaz.
No entanto, esse drama brasileiro está sendo agravado por um componente de irracionalidade política: o pandemônio na pandemia capitaneado por um presidente cujo desgoverno faz multiplicar, diariamente, os riscos à vida de 211,5 milhões.
Ao confrontar a Ciência, Bolsonaro assume a responsabilidade histórica pelas consequências nefastas da politização de uma epidemia sem precedentes. Ao transformar o Palácio do Planalto numa usina de crises, conseguiu desorganizar a já fragilizada estrutura de ação federal na Saúde.
Com o seu negacionismo, se alinha a personagens caricatos como os ditadores Daniel Ortega, da Nicarágua, e Alexander Lukashenko, da Bielorrússia. Ortega decidiu desconhecer a pandemia. Por isso, os nicaraguenses realizam enterros clandestinos das vítimas da Covid-19. Lukashenko, igualmente, acredita que o mundo vive uma “psicose” com o vírus. Por isso, receita aos bielorrussos terapias preventivas à base de muita vodca e sauna.
Mais modesto, e reafirmando todas as suas razões para ser modesto, Bolsonaro optou por prescrever aos seus ministros da Saúde a imposição da hidroxicloroquina como protocolo nacional para tratamento do novo coronavírus. Ainda não foi provada a eficácia da droga, isolada ou em coquetel. Ao contrário, os estudos científicos disponíveis são contraindicativos. Portanto, não há lógica em tal obsessão, salvo a já estabelecida pela psicopatologia.
O desgoverno comandado pelo presidente resulta numa desagregação no ministério, com efeitos destrutivos para a inteligência técnica disponível no Sistema Único de Saúde, responsável pela coordenação das iniciativas para mitigação da pandemia em todo o país.
Está claro que Bolsonaro deseja um ministro na posição de ajudante de ordens, a despeito de suas “prescrições” sobre a hidroxicloroquina ou o fim do distanciamento social contrariarem o consenso fundado no conhecimento científico.
Nesse rumo, será necessária uma firme atuação do Legislativo e do Judiciário, para delimitar o espaço do Executivo e conter um governante seduzido pelas próprias ideias, embora equivocadas, para se dizer o mínimo. A saída, por óbvio, é política.
• Acabam as dúvidas sobre referência do presidente à PF em reunião – Editorial | O Globo
Até material divulgado pela AGU comprova que Bolsonaro não falava de sua segurança pessoal
A projeção do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, feita terça-feira, deixou em pessoas que assistiram à gravação a convicção de que o presidente Bolsonaro, ao se exaltar quando reclamava de não poder fazer mudanças na sua “segurança”, garantindo que as faria mesmo que tivesse de trocar “o chefe” e o ministro, referia-se mesmo à Polícia Federal, em que estava na direção-geral Maurício Valeixo, e ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Depoimentos que se seguiram neste inquérito, tendo à frente o ministro do Supremo Celso de Mello e conduzido pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, não contestam este entendimento.
O suposto problema de interpretação é uma tentativa da defesa do presidente de protegê-lo da acusação pública do ex-juiz Sergio Moro de que o presidente desejava intervir na PF, para conseguir informações que o ajudassem a tomar decisões, função que é da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Onde estava Alexandre Ramagem, chefe da segurança do presidente na campanha, e de quem o ainda candidato e filhos se aproximaram. Ramagem, convidado por Bolsonaro, foi impedido de assumir a PF por liminar do ministro Alexandre de Moraes, do STF, e voltou para a Abin.
Na atual crise na saúde, em que o presidente afastou mais um ministro, Nelson Teich, ficou ainda mais exposta a forma como Bolsonaro atua na Presidência, sem preocupação com limites legais e sem ouvir conselhos de especialistas. Quem não ouve médicos sobre a inadequação de um medicamento no tratamento da Covid-19 também não entenderá que uma polícia judiciária, a PF, não pode compartilhar investigações. Também nada verá de aético em proteger filhos e “amigos” que estejam em algum inquérito na área federal.
O modo autoritário, voluntarioso, sem cuidado com regras, de Bolsonaro agir aparece no depoimento do delegado Alexandre Saraiva, da superintendência da PF do Amazonas, que disse ter sido sondado em 2019 por Alexandre Ramagem, a pedido de Bolsonaro, sobre o interesse em dirigir a Polícia no Rio de Janeiro, estado do presidente. Uma ação sub-reptícia, ao largo do ministro Moro e de Valeixo.
Celso de Mello irá assistir ao vídeo na segunda-feira, quando se espera que o divulgue, para que se conheça todo o contexto da reunião. A falsa discussão sobre o verdadeiro sentido da palavra “segurança”, usada por Bolsonaro, não resiste ao que disse o presidente num trecho divulgado pela própria Advocacia-Geral da União (AGU), no qual ele reclama que a PF não lhe dá informações, nem as Forças Armadas. O presidente parece desejar que um grande esquema de inteligência trabalhe para ele, mesmo sem base legal.
• Teich rejeita a opção pela morte – Editorial | O Estado de S. Paulo
Assim como Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro da Saúde provavelmente em respeito a seu juramento profissional
O médico Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro da Saúde menos de um mês depois de assumi-lo, provavelmente em respeito a seu juramento profissional, que diz, entre outras coisas: “A ninguém darei por comprazer nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda”. O mesmo comportamento teve o antecessor de Nelson Teich, o também médico Luiz Henrique Mandetta, ao recusar-se a obedecer às ordens do presidente Jair Bolsonaro que claramente causariam ainda mais danos à saúde da população brasileira, já bastante castigada pela pandemia de covid-19.
Qualquer médico que assuma o Ministério da Saúde e queira permanecer no cargo por mais de 15 dias terá que renunciar a esse juramento. Será, portanto, um mau profissional de saúde, que aceitará reduzir o Ministério da Saúde a mero despachante dos patológicos desejos de Bolsonaro. Pior, será um cúmplice de um empreendimento que, sem exagero, já pode ser chamado de social-darwinista – em que a morte por covid-19 é vista como uma forma de depuração da sociedade, pois só abate aqueles que não têm “histórico de atleta”.
Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta recusaram-se a chancelar a obsessão de Bolsonaro pela cloroquina, remédio cuja eficácia contra o coronavírus está muito longe de ser comprovada e cujos perigosos efeitos colaterais são, ao contrário, bastante conhecidos. Mandetta, quando ainda ministro, chegou a assinar um protocolo que liberava a droga para uso somente em pacientes em estado grave, com indicação médica e com a anuência do paciente. Mas, assim como seu sucessor, não aceitou a imposição de Bolsonaro para ampliar o uso em qualquer estágio da doença.
Pressionado pelo presidente nos últimos dias, Nelson Teich disse que havia ainda muita incerteza sobre a cloroquina e rejeitou a droga como um “divisor de águas” no tratamento da doença. Além de Bolsonaro, os únicos chefes de Estado que defendem a cloroquina como elixir milagroso contra a covid-19 são o norte-americano Donald Trump e o venezuelano Nicolás Maduro, o que dispensa comentários.
Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta também haviam manifestado oposição ao relaxamento das medidas de isolamento social, contrariando o presidente Bolsonaro, que dia e noite exige o fim da quarentena e a “volta ao normal” em todo o País, sob o argumento de que é preciso impedir o colapso da economia. É tal a determinação do presidente de colocar em risco a saúde e a vida de milhões de brasileiros para salvar sua própria pele que ele ameaçou fazer um pronunciamento em rede nacional, hoje, para insistir em seu discurso contrário ao isolamento, afrontando os governadores e prefeitos que, além de terem que lidar com a pandemia, são obrigados a enfrentar a sabotagem do governo federal.
Em menos de um mês, nada menos que três ministros – Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Sérgio Moro – deixaram o governo por se recusarem a cumprir ordens do presidente – não por insubordinação, mas em respeito aos brasileiros e aos princípios republicanos. Para Bolsonaro, quem o contraria está a contrariar o povo, que ele julga encarnar, razão pela qual seu comando deve ser obedecido sem questionamentos, mesmo que viole a Constituição, a ética e a decência.
Assim será com o próximo ministro da Saúde? Em vez de organizar os esforços nacionais do combate à pandemia, que está matando quase mil brasileiros por dia e esgotando o sistema hospitalar do País, o novo titular terá de ser apenas um obsequioso serviçal, pronto a pôr em prática os devaneios de Bolsonaro e a rasgar os manuais da ciência médica, fazendo o que nenhuma autoridade de saúde no mundo civilizado faria neste gravíssimo momento? Ou seja, terá que trabalhar pela sobrevivência política do presidente em detrimento da sobrevivência de milhares de brasileiros?
Como escreveu o médico Antonio Carlos do Nascimento em artigo publicado ontem no Estado, “sem a opção do genocídio, só nos resta o isolamento e a testagem abrangente para limitar o universo de circulação do vírus”. Aparentemente, o presidente Bolsonaro já fez sua mórbida opção.
• Isolamento é vida – Editorial | O Estado de S. Paulo
Não há outra medida capaz de frear a disseminação sem controle do coronavírus
Enquanto uma vacina ou um tratamento eficaz para a covid-19 não estiverem maciçamente à disposição da população, não há outro meio capaz de preservar vidas a não ser o isolamento. Por mais difícil que seja se manter firme a ele, no momento não há outra medida que possa frear a descontrolada disseminação do novo coronavírus. Isto deve ser dito por pais a seus filhos, por professores a seus alunos, por um amigo a outro, por governantes a seus governados, em suma, por qualquer pessoa sensata que nutra genuína preocupação com seu próprio bem-estar e com o de seus semelhantes.
O novo coronavírus é um patógeno mortal, como tristemente atestam a estatística nacional e os depoimentos emocionados de familiares e amigos dos mais de 12 mil mortos no País. Ao mesmo tempo, trata-se de um vírus que sucumbe ao contato com água e sabão ou álcool em gel. Portanto, o cuidado quase obsessivo com a higiene das mãos aliado ao isolamento salva vidas. É a garantia que há hoje.
Preocupa muito que esta não seja a visão compartilhada por grande parte da população. O monitor de isolamento social do Estado, feito com base em dados fornecidos pela Inloco, empresa de tecnologia que fornece inteligência de dados por geolocalização, revela que a média de isolamento no País é de 43,4%, porcentual muito abaixo da meta de 70%, o mínimo necessário, segundo especialistas, para frear a taxa de contaminação pelo novo coronavírus e dar fôlego para que os sistemas público e privado de saúde possam preservar a capacidade de atendimento aos doentes mais graves.
De acordo com o levantamento, nenhum Estado atingiu mais que 51% de isolamento. O Amapá é o primeiro do ranking, com 50,9% de sua população isolada. São Paulo, Estado mais afetado pela doença no País, com mais de 54 mil casos e 4.300 mortes, ocupa a 13.ª posição, com taxa de isolamento de 43,03%. O dado do monitor Estado/Inloco diverge do dado oficial do governo paulista, que indica algo em torno de 47%, por uma questão de metodologia. De qualquer forma, trata-se de um porcentual muito baixo diante da extrema gravidade da pandemia. Na capital paulista, nem o rodízio de veículos mais restritivo tem se mostrado eficaz para aumentar a adesão ao isolamento pelos paulistanos. Diante disso, não será surpresa se, num futuro próximo, um bloqueio total, o chamado lockdown, se impuser como único meio de salvaguardar vidas. Esta é a prioridade que deve nortear as ações de todo governante responsável na condução de suas ações durante a pandemia: salvar o maior número de vidas possível.
Um estudo elaborado pelo Imperial College de Londres revelou que o isolamento social foi capaz de reduzir em 54% a taxa de infecção pelo novo coronavírus nas localidades em que foi adotado com mais vigor no País. Ou seja, o isolamento reduziu a quantidade de pessoas que um doente pode infectar. Não obstante, a covid-19 avança de forma descontrolada. “Sem uma mudança significativa, a tendência é que o número de casos (no Brasil) continue crescendo”, disse ao Estado o médico Ricardo Schnekenberg, coautor do estudo.
É lícito inferir que, a despeito do volume de informação circulante, um porcentual da população ainda não tenha aderido com firmeza ao isolamento por desconhecimento da eficácia da medida. Mas a esmagadora maioria das pessoas que insistem em sair às ruas quando poderiam perfeitamente ficar em casa, ao contrário dos que prestam serviços essenciais, o faz por desdenhar da gravidade da doença ou porque seu ganha-pão diário depende das ruas, dada a enorme informalidade do mercado de trabalho no Brasil.
Não se deve subestimar o efeito que o comportamento irresponsável do presidente Jair Bolsonaro tem sobre uma parcela dos que não respeitam o isolamento. O apequenamento do Ministério da Saúde em meio à pandemia é o retrato mais bem acabado do desdém do presidente pela vida, pelos fatos, pela ciência. E se o presidente da República não mostra grande preocupação com a doença, podem pensar os que burlam o isolamento, é porque talvez ela não seja, de fato, tão grave assim. Um engano que pode ser fatal.
• Os juros e o perigo da gastança – Editorial | O Estado de S. Paulo
Banco Central aponta risco político de recaída na gestão frouxa das contas públicas
Qualquer sinal de gastança pode ser um entrave a mais para a política de juros do Banco Central (BC), modulada como estímulo a uma economia fortemente retraída. Juros baixos contribuem também para aliviar os encargos do Tesouro, facilitando a arrumação das contas públicas e liberando recursos para despesas fundamentais. Mostrar seriedade e responsabilidade é hoje crucialmente importante para evitar custos enormes nos próximos anos. Forçado a gastar e a conceder facilidades fiscais por causa da pandemia e da recessão, o governo deveria deixar bem claro seu compromisso de retorno à austeridade em janeiro, depois de esgotada, legalmente, a fase de calamidade. Mas a sinalização do Palácio do Planalto aponta para o lado oposto, especialmente a partir da aliança do presidente Jair Bolsonaro com o Centrão. As pressões por maiores gastos já são assunto corrente em Brasília.
Se o toma lá dá cá avançar, haverá reação no mercado financeiro e o BC poderá ser forçado a ajustar suas ações à nova situação. Até aqui foi possível manter o afrouxamento iniciado em 2016 e, mais que isso, criar facilidades especiais de crédito como resposta à recessão gerada pela pandemia. A política de juros continua estimulante. Em mais um esforço para reanimar a economia, o BC baixou a taxa básica a 3%, na reunião periódica de seu Comitê de Política Monetária (Copom).
O corte de 0,75 ponto porcentual foi descrito, na ata da reunião, como um “estímulo extraordinariamente elevado”, justificável por uma crise interna muito grave, no cenário de uma recessão global “com poucos precedentes históricos”. Uma nova redução, talvez igual, poderá ocorrer na próxima reunião, prevista para os dias 16 e 17 de junho. Isso dependerá, como sempre, de novas informações sobre o quadro econômico. Desta vez, no entanto, a ata contém um comentário incomum – e um alerta – sobre os limites da política de juros.
O comitê discutiu a possível existência de um limite mínimo para a taxa básica. Esse limite, ponderou-se, deve ser mais alto nas economias emergentes do que nas avançadas, como a americana, as europeias e a japonesa. Esse piso está associado a um prêmio de risco incluído nos cálculos de investidores e financiadores. O prêmio, ressaltou-se, “tende a ser maior no Brasil, dadas a sua relativa fragilidade fiscal e as incertezas quanto à sua trajetória fiscal prospectiva”.
A fragilidade fiscal é conhecida e evidenciou-se, mais uma vez, com a nova crise. Não seria preciso incluir na ata considerações sobre esse ponto. Passada a fase de calamidade, as contas oficiais estarão bem piores do que se previa no começo do ano, com déficit primário (sem juros) em torno de R$ 600 bilhões e dívida pública próxima de 90% do Produto Interno Bruto (PIB), ou talvez acima disso. Mas de onde vêm as incertezas quanto à “trajetória prospectiva”?
A resposta deve envolver algo mais que a esperada piora das finanças públicas nos próximos meses. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem prometido um retorno, tão cedo quanto possível, à agenda de ajustes e reformas. Bastará essa promessa? Não se avança nessa discussão na ata do Copom. Mas há uma resposta concisa no parágrafo seguinte, onde se mencionam “possíveis frustrações em relação à continuidade das reformas e possíveis alterações de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas”. Esses fatores poderiam refletir-se nos juros estruturais da economia e dificultar a manutenção da atual política monetária.
Não se explica de onde podem surgir “alterações permanentes” nas finanças públicas, mas essa hipótese envolve, obviamente, o abandono do roteiro indicado pelo ministro da Economia. Envolverá também a possível substituição do ministro por alguém mais afinado com as preocupações pessoais do presidente e com os padrões do Centrão? A insegurança quanto às condições fiscais e à política brasileira já se reflete rotineiramente no fluxo de recursos e no câmbio. Com muita diplomacia, a ata do Copom deixa mais um alerta.
• A queda – Editorial | Folha de S. Paulo
Nova troca na Saúde explicita derrocada de Bolsonaro, ele próprio uma crise
O pedido de demissão de mais um ministro da Saúde —em menos de um mês e durante a mais grave emergência sanitária da história contemporânea— escancara a derrocada de um presidente da República que já nem mesmo finge governar o país.
Importa menos, até, a perda de um quadro como Nelson Teich, de permanência no posto insuficiente para tomar conhecimento dos meandros da máquina administrativa. Tampouco seria insuperável a saída do antecessor, Luiz Henrique Mandetta, que cultivara boa imagem em entrevistas acerca do combate ao coronavírus.
Está em curso, isso sim, a completa e justificada desmoralização do governo nacional, a cada dia nublado pela mesquinharia e pela estupidez de Jair Bolsonaro.
Torna-se inimaginável, na Saúde, que algum profissional sério e sensato vá conformar-se a um chefete obcecado com quiméricas cloroquinas e, pior, empenhado numa cruzada macabra contra as imprescindíveis políticas de distanciamento social a custo tocadas por governadores e prefeitos.
Obstáculos similares se apresentam às demais áreas da gestão que ainda gozam de alguma credibilidade. Todas, cedo ou tarde, tendem a estar subordinadas à única prioridade real do presidente —agarrar-se a um cargo para o qual reúne parcas condições intelectuais, morais, programáticas e políticas.
Sua intervenção cretina na gestão da saúde pouco difere da ingerência na Polícia Federal que pode custar-lhe o mandato. Num e noutro caso, trata-se de colocar a própria sobrevivência acima das políticas de Estado e do interesse nacional.
Ao investir contra quarentenas, Bolsonaro pretende se eximir de responsabilidade pela recessão inevitável. Na acintosa afronta à autonomia da PF, ambiciona desvencilhar-se de investigações que o envolvem e a seus filhos. O próximo passo, tudo indica, será o loteamento do Executivo em favor de forças partidárias fisiológicas.
“Vou interferir. Ponto final”, vociferou o presidente na reunião ministerial de 22 de abril, cujo conteúdo gravado em vídeo é peça-chave no inquérito que apura um possível —e crescentemente plausível— crime de responsabilidade.
Sua defesa se apega à ausência de menção explícita à instituição policial no trecho, o que soa como filigrana diante do conjunto da obra. Na saída de Sergio Moro da Justiça, como nas de Teich e Mandetta, sobram as evidências da recusa presidencial à impessoalidade da administração, que as trocas na PF apenas expõem formalmente.
Com meros 500 dias de mandato, Bolsonaro subtrai opções. Não bastassem as calamidades sanitária e econômica, ele próprio converteu-se em crise a ser enfrentada.
• Desigualdade em tela – Editorial | Folha de S. Paulo
Aulas online são necessárias, mas insuficientes para compensar dano da pandemia
A manchete de quinta-feira (14) na Folha despeja água fria sobre a esperança de que a tecnologia pudesse mitigar o impacto negativo da pandemia na educação: “Menos da metade dos alunos acessa ensino online em São Paulo”.
As dificuldades, decerto, não inerem ao ensino a distância como tal. Ferramentas de aulas, atividades e exercícios nas telas de TV, computador ou telefone celular representam recurso adicional que pode e deve ser empregado.
O distanciamento forçado pelo coronavírus terá talvez o efeito paradoxal de abater algo do preconceito contra essas técnicas por uma visão tradicionalista. Têm e terão papel valioso, sobretudo como canais complementares para reforço e solução de dúvidas.
Persiste o problema da equidade, contudo. Verdade que 96% dos domicílios brasileiros contam com aparelhos de TV, 93% com celulares e 79% com acesso à internet. Por mais que tenha progredido a penetração dos meios, contudo, ainda estamos longe da universalização que excluiria o prejuízo de alguns estudantes pela falta de acesso.
O governo estadual paulista, ciente de que o tráfego de dados tem custo crescente na despesa domiciliar, tornou-os gratuitos para uso do aplicativo educacional. Mesmo assim, só 1,6 milhão dos 3,5 milhões de alunos (47%) completaram acesso ao programa pelo celular pelo menos uma vez.
Isso nem mesmo garante que tenham assistido a todas as aulas. Para cumular, há deficiência na comunicação, dado que muitos estudantes relatam não saber que aulas estão disponíveis na TV. Isso no estado mais desenvolvido do país; pior tende a ser em outros.
Não é só questão de acesso, vê-se. No ensino convencional, há a rotina de frequência à escola e o estímulo da merenda. Sob a pandemia, existe pouco incentivo para concentrar-se na frente de uma tela, muitas vezes sem ambiente tranquilo ou adultos para supervisionar o cumprimento de atividades.
Sairão mais prejudicados desses tempos de coronavírus aqueles jovens e crianças que, em condições normais, já carecem de suportes familiares e sociais para perseverar na educação. A tecnologia pode até agravar vetores de desigualdade e contribuir para aumentar futuras taxas de evasão.
É essa realidade que recomenda o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), tema que deveria estar na mira de um governo menos alienado.
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