- O Globo
Ao tentar brigar com números da pandemia, tudo o que o governo conseguiu foi mais desgaste e exposição negativa
Quando os absurdos se tornam frequentes, o risco é perdermos a noção da gravidade. Sonegar informações de mortos e contaminados numa pandemia é crime. Tudo o que o governo Bolsonaro já fez nos últimos dias no Ministério da Saúde — tirar site do ar, divulgar números conflitantes, acusar governos estaduais de superfaturar a morte, desinformar deliberadamente — é abuso de autoridade. É também inútil. Os órgãos de imprensa anunciaram uma parceria inédita, e o Congresso, uma comissão mista especial de acompanhamento do coronavírus. No final do dia, o governo ensaiou um recuo, mas ainda deixou muitas dúvidas no ar. Divulgou dados incompletos, com menos mortes e casos em relação ao que foi apurado pelo consórcio dos jornais.
Democracia busca sempre maior transparência. Ditaduras escondem informações, brigam com os números, quebram termômetros, ameaçam quem informa, mudam metodologias para ver se conseguem fazer os dados corresponderem à versão que lhes convém. Numa pandemia, a falta de informação desorienta pessoas e administradores públicos e pode levar a decisões temerárias.
Numa crise, a comunicação confiável é uma arma poderosa na mão de governantes esclarecidos para ajudar na solução. É parte do tratamento. O Ministério de Saúde comandado por Luiz Henrique Mandetta entendeu isso. Aquelas entrevistas diárias ajudavam a esclarecer e informar. No início da pandemia, com tanto desconhecimento sobre o assunto, foi fundamental e sem dúvida salvou vidas por transmitir o senso de urgência e gravidade. No curto período Nelson Teich, a comunicação ficou mais opaca e o Ministério da Saúde se enfraqueceu. No interinato do general Pazuello, o Ministério da Saúde está sendo desmontado. A briga com os números é parte dessa conspiração.
A ideia que eles tentaram emplacar nos últimos dias no Ministério, de anunciar apenas as mortes confirmadas no dia, tinha vários defeitos. Primeiro e mais importante, deixaria alguns óbitos num limbo, dado que eles também tinham sumido com os dados consolidados. Segundo, interromperia o critério que vinha sendo usado e que era compreendido por todos já. Terceiro, eles mesmos se atrapalharam, como ficou claro na divulgação de dois números totalmente díspares anunciados para as mortes de domingo. Era de 1.382 e caiu para 525. Com manobras assim perde-se credibilidade. Ontem, eles avisaram que haverá novo site, prometeram divulgação de todos os números. O das mortes do dia, o das mortes consolidados no dia, e os dados gerais, acumulados. Tudo isso foi anunciado pelo secretário-executivo substituto, Élcio Franco. Ele ostentava uma caveira na lapela. Alguém deveria avisá-lo que, dadas as atuais circunstâncias, não deveria exibir tal medalha em uma entrevista no Ministério da Saúde.
O recuo de ontem pode não encerrar essa brincadeira trágica com as estatísticas. Foram dias atrasando deliberadamente a divulgação para tentar atingir — como explicou o presidente Bolsonaro — o Jornal Nacional. Tudo o que conseguiu com suas idas e vindas foi mais desgaste e exposição negativa. Há uma velha lei implacável: quem briga com os números acaba sempre perdendo.
É um espanto que o presidente consiga militares dispostos a incendiar o próprio currículo para seguir ordens estúpidas, como as que foram inspiradas em um notório e caricato áulico. O general Pazuello e seus coronéis, que militarizaram o Ministério da Saúde, fazem mal também à imagem da própria corporação à qual integram ou integraram. Sem traço de espinha dorsal se submetem a ordens esdrúxulas desprovidas de qualquer respaldo técnico. Quando a situação melhorar, quando chegar o dia em que vencermos o vírus, graças a quem agiu certo durante essa pandemia e graças sobretudo aos heróis da saúde, nós jornalistas seremos os primeiros a querer noticiar. E desta vez com alegria.
A confusão pode ser só sobre dados, mas não percamos a visão do todo. O que Bolsonaro tem feito durante esta pandemia é terrivelmente desumano. Desde o começo, negar a gravidade da doença, não ser solidário, derrubar ministros da Saúde, prescrever remédios como se médico fosse, atacar governadores e prefeitos, adiar a transferência de recursos para estados e municípios e impor a maquiagem do número de mortes. Bolsonaro sabota a saúde do povo brasileiro, estimula comportamentos temerários e perturba a ordem pública. Ele é o pior governante que poderíamos ter numa crise desta dimensão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário