- Folha de S. Paulo
Presidente pode negar a realidade, mas as consequências seguirão batendo à sua porta
Não é primeira vez que Bolsonaro luta contra dados oficiais. Em abril do ano passado, criticou o IBGE pelos números do desemprego, prometendo mudanças na metodologia. Em agosto, demitiu o cientista Ricardo Galvão da direção do Inpe pelos números desastrosos do desmatamento da Amazônia (que, em 2020, aliás, só têm piorado).
Ainda não está claro o que motivou a mudança na divulgação dos dados de mortes por Covid-19 do Ministério da Saúde. Tudo indica, contudo, que foi o desejo expresso do presidente de que o número de mortes diárias não ultrapassasse mil que motivou a lambança vista nos últimos dias, com sérias consequências para a credibilidade do governo e do Brasil.
Não existe indicador perfeito. Toda coleta de dados está sujeita a falhas e todo número decorrente dela tem suas limitações enquanto representação da realidade. O importante é que o indicador mapeie minimamente bem o fenômeno estudado, que a metodologia seja transparente, o uso generalizado e que tenha consistência ao longo do tempo. Só assim podemos comparar diferentes países e o mesmo país ao longo do tempo.
O grau de obscurantismo e incompetência no governo é assustador. Inicialmente, Bolsonaro fazia a previsão de que o total de mortes por Covid-19 no Brasil não chegaria a 800.
Não vimos qualquer mudança de postura de sua parte depois de um erro tão profundo em um assunto tão sério. Agora, tenta desesperadamente maquiar os números para que as mortes fiquem abaixo de mil por dia. Conforme noticiado no domingo, a cúpula do Ministério da Saúde justificou a mudança no tratamento dos dados mandando aos técnicos, via WhatsApp, um vídeo do empresário bolsonarista Luciano Hang.
Nisso, os nossos militares que comandam o Ministério da Saúde saem com a reputação manchada.
Em vez de servir ao Brasil e dar números confiáveis à população, preferiram retorcer os dados para melhorar a imagem da atual gestão.
O governo sabe que não conseguirá esconder o número de mortes registradas diariamente. As secretarias de Saúde estaduais continuam a publicá-los. Mas a criação de um novo indicador basta para criar um número paralelo. É a reedição, para a saúde pública, do "PIB público" e "PIB privado" do início do ano. É o bastante para melar o debate por alguns dias e produzir mais alguns conflitos.
Desde o início da crise, Bolsonaro se absteve de governar, preferindo sabotar o trabalho de quem tentou combater a epidemia, seja nos governos estaduais ou no próprio governo federal.
A cada nova briga, ele sai menor. Governadores conquistaram autonomia, Congresso aprova o que bem quiser, STF veta e investiga à vontade.
Agora é a vez da imprensa. Grandes jornais já não perdem tempo noticiando as gracinhas do presidente na frente do palácio. Agora, numa parceria entre diversos veículos, viabilizaram a divulgação dos dados nacionais da epidemia à revelia dos esforços do governo para turvar as águas.
Bolsonaro se preocupa apenas com sua própria imagem. Os protestos de domingo, majoritariamente pacíficos e que congregaram alguns milhares de pessoas o preocupam mais do que a pandemia. Busca culpados, jamais traz soluções.
E quando o desastre vem, embaralha propositalmente os números. Ele pode negar a realidade, mas as consequências dessa negação seguirão batendo à sua porta.
Os crimes de responsabilidade se empilham. Agora, as mortes também. Notas de repúdio não bastam.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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