- O Globo
Temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste, prática fascistoide que compõe a gramática golpista
Não deveria haver gente protestando nas ruas. Há uma pandemia; a sanha de um vírus traiçoeiro. Há também, no entanto, o vírus do bolsonarismo; a forma agressiva como, explorando a janela de oportunidades escancarada pelo enfrentamento à Covid-19, Jair Bolsonaro e seu projeto autocrático de poder aceleram o programa de radicalização para infeccionar a democracia liberal. Crise é chance. Crise é pretexto.
Agora, por exemplo, temos um governo que, oficial e criminosamente, descaracteriza números de doentes e mortos pela peste — prática fascistoide que compõe a gramática golpista. A ideia: que não haja fatos; que tudo seja controvérsia e sirva a formulações conspirativas. É a peste dentro da peste. As pestes dentro da peste. Uma delas: um militar, general, à frente do Ministério da Saúde, prestando-se ao papel de ser cavalo da vontade do presidente — que sobre toda a superfície do Estado tenta expandir a natureza meramente narrativa do fenômeno reacionário que encarna.
O que interessa: em campanha contínua, fabricar constantemente inimigos. A lógica é simples e influente. Como o establishment, sinônimo de “forças nada ocultas”, trabalharia para derrubar Bolsonaro, tudo quanto originário do sistema — da própria estrutura republicana — teria o fim de destruí-lo. Por exemplo, a consolidação e a exposição dos números de vítimas da Covid-19: ação para desestabilizá-lo.
Bolsonarismo é jogo de versões; investimento em dissonâncias, guerra cultural permanente — para isto, com a cumplicidade de militares, foi capturado o Ministério da Saúde. A multiplicação de helenos no governo — tragando o Exército — é muito mais perniciosa que os três ou quatro weintraubs que há.
Para defender este projeto de poder, com a adesão frequente do próprio Augusto Heleno, temos — há semanas — centenas de pessoas nas ruas; todas mui à vontade, sem a vigília policial, como merecem os patriotas ordeiros da ucranização. Manifestações governistas — não raro com a presença do mito — que pedem, a cada vez com maior desinibição, intervenção militar; mas com a ressalva de que para manter Bolsonaro no comando. O presidente presente convida aos atos e lhes chancela pauta e tom. Tão pacíficos — à parte um ou outro taco — quanto serão sempre encontros de democratas que demandam, pregações criminosas, os fechamentos de Congresso e Supremo.
O presidente presente chama às ruas e avaliza o tom também de seus opositores. Aí está. Outro grupo disposto a tomar riscos — e colocar em risco — por motivo político. Questionados sobre a irresponsabilidade de protestarem sob o bafo da praga, esses manifestantes dirão que têm pressa, que o bolsonarismo avança em seus propósitos golpistas — e que um vírus, o coronavírus, não pode servir de blindagem para que outro vírus, o bolsonarista, prospere. São argumentos poderosos, que abastecem um ciclo perigoso, cujo impulso original tem músculo num cálculo pessoal sobre a morte. Vale? A resposta é individual. Mas pergunto: quanto desse ímpeto — desse desejo por se medir contra o designado mal — terá matriz no ressentimento? O ressentimento, o veneno: a própria essência do bolsonarismo — daquilo que se quer vencer.
A mentalidade que nos dirige é a autoritária. Há um clima de revanchismo. É difícil falar em protesto pacífico. Seria simplificador. Estamos na mais baixa cavidade de uma depressão política aguda — e a linguagem que se normalizou é a da violência. De modo que, sim, a manifestação contra Bolsonaro foi pacífica na maior parte do tempo — e pacífico foi o comportamento da maioria de seus participantes, com o necessário destaque à centralidade da bandeira antirracismo.
Pacífica, majoritariamente pacífica, quase sempre em defesa da atividade política como forma de mediação — mas não só pacífica e nem sempre dentro das regras do trânsito político. Há nuances. Manifestações dentro da manifestação. Não examiná-las — ou tratá-las como irrelevantes — será fazer militância. Havia muitos sentimentos reunidos ali; entre os quais o ódio, ódio à burguesia, ódio à polícia, ódio bradado, costela da qual se desgarrou, como produto marginal do protesto, a falange para o choque, para o confronto, para a depredação. Talvez seja derivação inevitável. Mas não indomável; sendo possivelmente controlada, diluída essa franja, pela evolução madura do movimento — a ver — para pautas que, ao estabelecerem vínculos institucionais, sejam capazes de seduzir a sociedade. A do impeachment, por exemplo.
Ninguém se junta a uma manifestação, em meio a uma pandemia, para brincar. São sujeitos no limite. O caráter difuso dos atos atrai agendas várias. Circunstância também propícia à operação de oportunistas e infiltrados. Eu sei. De todo modo: a engrenagem perfeita para um circuito temerário; que — acercando-se da desobediência civil — arma gatilho para as intenções golpistas.
Não dou conselho a corajosos. Mas — importando imagem recente — não se vencerá Bolsonaro depredando Churchill.
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