terça-feira, 9 de junho de 2020

*Michel Temer - Democracia e manifestações de rua

- O Estado de S. Paulo

A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do ‘pluralismo político’. É exercício democrárico

Logo de saída, no artigo 1.º da Constituição Federal, o Brasil é definido como “Estado Democrático de Direito”. Esta dicção tem especial significado. É que na ciência política Estado Democrático e Estado de Direito se equivalem. Aliás, quando se abandonou o Estado Absolutista, surgiu o Estado de Direito. Por que faço esta afirmação? Precisamente para revelar a ênfase na democracia.

Saímos, em 5 de outubro de 1988, data da nova Constituição, de um sistema centralizador e autoritário. Quisemos, e demos, relevo à democracia, que, com licença para a obviedade, significa “governo do povo”. Daí termos usado a expressão que abre a Constituição Federal logo no seu primeiro artigo.

Impõe-se verificar quais são os desdobramentos desse dispositivo para verificar se efetivamente vive-se na democracia.

De logo se registra que o inciso V do mesmo artigo 1.º sustenta que um dos fundamentos do Estado é “o pluralismo político”. Portanto, a pluralidade de opiniões é marca do nosso sistema, já que política (do grego polis) é a arte de governar. Plural, como é, enseja o debate de opiniões. De ideias e posições programáticas. E, naturalmente, de manifestações.

De onde vem o direito à manifestação? Do artigo 5.º, inciso XVI, que preceitua “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

O que ressai desse preceito é que manifestações podem dar-se “nas ruas” já que alude a “locais abertos”. Apenas é preciso manter a ordem. Daí a necessidade de prévio aviso e com pessoas desarmadas. E desde que não impeçam outra reunião no mesmo local que fora anteriormente comunicada à autoridade. Especialmente por tratar-se de movimento “pacífico”, a lei e a prudência administrativas recomendam que não se deve e não se pode autorizar a reunião de grupos divergentes no mesmo espaço. Aliás, quando os governos determinam e autorizam as reuniões em locais diversos não estão fazendo mais do que cumprir a Constituição.

Assim, ao lado da liberdade de manifestação do pensamento (artigo 5.º, inciso IV), da liberdade de consciência e de crença, a liberdade dos cultos religiosos (art. 5º, VI), a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5.º, VIII), a estas somada a liberdade de manifestação nas ruas, revela-se concretamente a democracia.

A essa altura podemos indagar: podem ser apontados como terroristas os que se manifestam na rua? Vejamos o que é “terrorismo” no texto constitucional. De logo, é crime inafiançável, dentre outros, o terrorismo. Está ao lado dos crimes: prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, assim como os crimes hediondos. Por que são crimes? Porque agridem o sistema normativo e, por isso, são apenáveis. Adicione-se a essa concepção o artigo 4.º, inciso VIII, da Constituição que repudia “o terrorismo e o racismo”.

Qual pode ser o crime de manifestação pública autorizada no Texto Magno que cumpriu os requisitos que o próprio texto exige? Nenhum. A manifestação contra o governo ou a seu favor deriva do “pluralismo político” a que antes aludimos. É exercício democrático. Pode, sim, ser sancionado se houver desordem deliberadamente praticada, conflitos que gerem ferimentos. Mas aí são outras hipóteses delitivas, puníveis por outras razões legais. Ou seja, não é a manifestação em si que é crime, nem pode ser classificada como terrorista. O que pode haver é apuração de eventual penalidade sobre “a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” nos dizeres do artigo 5.º, inciso XLIV. Daí porque inadequados juridicamente os movimentos que pregam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Convém anotar, ainda, que o terrorismo pressupõe clandestinidade, movimento subterrâneo, às escondidas. Nada que diga respeito a manifestações públicas, a céu aberto.

A tranquilidade do País depende do cumprimento rigoroso da Constituição. E esta prega a paz e harmonia entre as pessoas e as instituições.

*Michel Temer, ex-presidente da República

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