- O Globo
A sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva
O índice de estupidez de quem abarrotou bares e ruas do Leblon na noite de quinta-feira merece atenção para além de um simplório filtro por classe social. Nas franjas das periferias e comunidades, bailes funk também rolam adoidado ao arrepio de qualquer quarentena. Esses bolsões de incivilidade tampouco são coisa só nossa. Nos Estados Unidos, matriz brasileira de gestão irresponsável do coronavírus, exemplos de insensatez social ostensiva pipocam emNova York e Houston, lotam Miami Beach e assustam Los Angeles. A novidade é desafiar o amanhã embarcando em “Covid parties” sem proteção, propósito ou culpa.
À primeira vista, essa sofreguidão irreprimida pode evocar “A noite dos desesperados”, filme ambientado na Grande Depressão de 1929 com Jane Fonda em papel memorável. Mas só à primeira vista. Na obra do diretor Sydney Pollack, o grupo à deriva que desce aos infernos para vencer uma maratona de dança e conquistar um prêmio em dinheiro é arrastado pela necessidade. No filme, incentivados por um promotor sem escrúpulos e oportunista, eles arriscam tudo para sobreviver, inclusive a autodestruição. Já os festeiros afoitos de hoje jogam sobretudo com a vida alheia. E de graça, sem ganhar nada. São paspalhos.
Mas há um elo em comum entre a trama ficcional e o momento coronavírus atual: a figura do promotor oportunista. Em sua versão 2020 ele é tanto o prefeito que reabre sem ter fechado quanto o governador que rouba respirador ou o presidente que achincalha o uso da máscara. Impulsionados por estreiteza de visão, aposta negacionista ou pura irresponsabilidade, esses agentes do devaneio estão levando o país à neurastenia. E a sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva.
Virou notícia a iniciativa de um shopping da cidade de Botucatu, no interior paulista, que liberou a circulação de automóveis pelos corredores, no interior do prédio. O cliente precisa estar de máscara, não pode sair do veículo, mas retira suas encomendas diretamente na porta das lojas. Tudo seguindo as normas sanitárias vigentes na cidade, que foi rebaixada para a chamada fase 1 (vermelha) do Plano São Paulo, portanto de quarentena mais restritiva — apenas serviços essenciais podem permanecer abertos. Motos e carros movidos a diesel têm acesso vetado ao local, mas havia limite de velocidade para a circulação dos muitos SUVs que se enfileiraram no primeiro dia. Um sucesso. As imagens do chamado “drive-thru in door” são estupefacientes.
Se para uns consumir é pretender que nada mudou, para quem foi condenado a confundir cidadania com consumo voltar a comprar é necessidade. Em shoppings populares já abertos legalmente, o afluxo é quase desesperado.
O ativista ambiental britânico George Monbiot descreve assim o sistema falido em que vivemos, que depende de crescimento contínuo e exige que percamos nossa capacidade de tomar decisões ponderadas: primeiro satisfazemos nossas necessidades reais, depois nossos desejos intensos e vontades de ocasião. Por fim, somos induzidos a continuar a adquirindo bens e serviços de que não precisamos nem queremos. É quando abandonamos nossas faculdades discriminatórias e sucumbimos ao mero impulso, tragados por um ciclo de compulsão ao consumo. Monbiot cita como exemplos a existência de uma torradeira capaz de imprimir a imagem do dono no pão, de um porta-papel higiênico que envia mensagem a seu celular informando que o rolo está acabando e de uma escova de cabelo (para adultos) que informa se você sabe escovar corretamente o cabelo. O autor alerta para o fato de o meio ambiente não responder a sinais da Bolsa e do mercado.
Pandemias também não.
Dias atrás coube ao atual diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), dr. Robert Redfield, apresentar-se perante uma inquieta Comissão Parlamentar de Comércio e Energia. Indicado por Donald Trump, Redfield surpreendeu a todos na franqueza. Informou aos deputados que o governo americano “provavelmente vai gastar US$ 7 trilhões com esse viruzinho”. E acrescentou: “A realidade é que [a pandemia] botou esta nação de joelhos.” A última vez que se ouviu falar da nação de joelhos foi após o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 2001.
No Brasil as contas ainda estão muito longe de fechadas — nem o custo em vidas, nem o financeiro. Mas o país já está firmemente alinhado à matriz como nação pária no combate civilizado à pandemia. Na Europa que se entreabre, brasileiro não entra por enquanto. Por pertinente, copia-se aqui trecho de entrevista do historiador John M. Barry, autor do aclamado “A Grande Gripe”, concedida esta semana a Ana Lucia Azevedo, no GLOBO:
— Como o senhor vê o posicionamento de líderes que negam a Ciência, como os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro?
— Serei diplomático. Eles são idiotas perigosos.
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