- Correio Brasiliense, 25/08/2020
A escravidão era aceita tão naturalmente, que nem os escravos lutavam pela Abolição; alguns reagiam, mas sem imaginar um mundo em que brancos e negros tivessem os mesmos direitos, fugiam do inferno em que viviam, mas sem imaginar o paraíso da liberdade. Por isso, alguns historiadores dizem que havia escravos até nos quilombos. Intelectuais, políticos, padres, empresários, trabalhadores, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.
Demorou para surgirem reações contra maus tratos que sofriam os escravos, tais como a proibição do tráfico, o ventre livre, a liberdade dos sexagenários, mas sem tocar na estrutura escravocrata. Da mesma maneira, nas últimas décadas implantamos medidas favoráveis à educação pública, mas sem a meta de assegurar que o filho do pobre tenha acesso à mesma escola do filho do rico.
A defesa da Abolição só surgiu depois de três séculos de escravidão inspirada desde o exterior, e sob a desconfiança geral da sociedade: por ser vista como uma utopia impossível, desnecessária, contra a natureza das coisas e ameaçadora do estabelecimento social. Os humanistas que eram contra os maus tratos não conseguiam ver a possibilidade, nem a razão, para o fim do sistema arraigado sob visão hegemônica de que a desigualdade entre raças era natural, como hoje é aceita a desigualdade educacional por renda.
Até o final da luta, a bandeira da Abolição foi carregada por poucos. A trincheira contra ela tentou adiar a data e indenizar os donos, mas perdeu. Mesmo assim, quando ela chegou, os não-escravos não aceitaram dar os mesmos direitos aos ex-escravos e seus filhos, negando-lhes terra e escola. Continua resistindo na última trincheira da escravidão: a escola como privilégio para poucos, ricos, na maior parte brancos. A luta atual pela igualdade na qualidade da educação tem este mesmo lento ritmo. As pessoas começam a ter sentimentos de vergonha pelo atraso educacional no país, a perceber que a evolução tecnológica está exigindo conhecimento, mas sem aceitar a ideia de que a escola deve ser a mesma para ricos ou pobres.
Quase 100 anos depois da Abolição, criamos um sistema de escolas públicas municipais, programas para merenda e livro didático, Emenda Calmon; determinamos obrigatoriedade de matrícula dos 6 aos 14 anos, depois, desde os 4 aos 17 anos; implantamos Fundef, Fundeb, PNE-I, PNE-II, Piso Nacional Salarial, mas não nos atrevemos a uma estratégia educacionista. Nenhum partido, nenhum governo, de direita ou de esquerda, defendem e se comprometem com uma estratégia com duas metas: o Brasil ter educação com a qualidade das melhores do mundo, e toda criança ter acesso igual a essa educação, independentemente da renda ou do endereço de sua família. Eleitores e eleitos, não acreditam ou não querem, tanto quanto na escravidão muitos não queriam a Abolição e outros não acreditavam que ela fosse possível.
A igualdade escolar é o gesto que ficou faltando na Abolição. A desigualdade na qualidade da escola é um resquício da escravidão, a última trincheira. Mas a ideia educacionista não seduz a opinião pública. Nem mesmo o movimento negro tem essa bandeira para completar a Abolição, porque se concentra na luta correta, mas insuficiente, para beneficiar os afrodescendentes que terminaram o ensino médio e querem entrar na universidade, mas sem lutar pela alfabetização dos pobres na idade certa, pela erradicação do analfabetismo que ainda tortura 12 milhões de adultos, e garantir a cota de 100% dos jovens brasileiros concluírem o ensino médio com qualidade e qualidade igual. Comportamento parecido com o dos humanistas contra maus tratos, mas sem aceitar a Abolição.
A última trincheira da elite social e econômica é manter para seus filhos o privilégio de uma escola com mais qualidade do que a escola dos filhos dos pobres. Por isso, é difícil um pacto social para uma estratégia que objetive colocar a educação brasileira entre as melhores do mundo, e que todas as escolas sejam concessão pública, abertas para todos os alunos. Mesmo assim, seguindo o exemplo dos abolicionistas, não podemos deixar de lutar por essa bandeira, ainda sabendo que até mesmo aqueles que se incomodam com o vergonhoso quadro de nossa educação vão continuar defendendo os paliativos que caracterizavam os humanistas-contra-os-maus-tratos. E não podemos ficar contra eles, mesmo sabendo a insuficiência.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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