- Valor Econômico
Fiscalistas e seus críticos vivem dilema do auxílio emergencial
Um destacado executivo brasileiro fez, dias atrás, uma afirmação interessante, mas controversa. Não é o caso de citar o nome dele, porque não se pretende aqui individualizar uma questão que está longe de ser individual. Por isso, ninguém será citado nominalmente nesta coluna.
A afirmação do executivo foi mais ou menos a seguinte: a âncora fiscal será vista no futuro com a mesma importância que hoje é dada ao controle inflacionário. No passado, discutiu-se se deveríamos ter uma âncora monetária. Hoje esse debate está superado, ninguém questiona mais a relevância e a função social de você ter uma inflação sob controle.
Sim, a afirmação acima é inteligente, mas a comparação não parece muito oportuna. Deixemos de lado a questão da âncora monetária, que passou a ser muita discutida depois que a injeção trilionária de dinheiro na economia não provocou inflação após a grande crise global de 2008. Mas a questão central é que a importância do controle da inflação não foi algo percebido apenas pelos economistas, mas pelos brasileiros no seu dia a dia.
O executivo que fez a comparação entre as âncoras fiscal e monetária talvez não tenha muita memória sobre o que aconteceu no Brasil nos anos 1980 e no início dos anos 1990, até o Plano Real, em 1994. Ele ainda usava calças curtas quanto a inflação brasileira atingiu 82,4% em um único mês, março de 1990. Ou quando foi a 2.477% em um ano, o de 1993.
Hiperinflação é algo que se sente na pele. E sobretudo, no bolso. O brasileiro ia ao supermercado no sábado e os preços já haviam subido 10% a 15% em relação aos de sexta-feira. O jeito era encher o carrinho com tudo o que fosse possível, porque na segunda-feira os preços já seriam bem mais elevados, remarcados pela inércia inflacionária. Nos corredores, o consumidor disputava espaço com uma multidão de remarcadores, com suas maquininhas, colando selos em cima de selos.
É muito fácil apoiar e até endeusar uma política, seja âncora monetária, seja qualquer outra, quando ela interrompe uma maluquice hiperinflacionária dessa magnitude. Não parece razoável achar que a mesma veneração se dará, no futuro, à âncora fiscal. Esta, muito mais do que a outra, impõe sacrifícios, redução de gastos e, em geral, provoca contração econômica e extermínio de empregos.
Vai aqui, então, uma opinião que alguns fiscalistas vão desdenhar. Em meio a uma guerra pela saúde, o país vive tempos de terrorismo fiscal.
A expressão é pesada, mas necessária. Desde 2015, esse terror vem sendo espalhado como se fosse um dogma pela militância fiscalista, algo que começa a cansar.
Dias atrás, um ministro de Estado disse ser crime a decisão do Senado de derrubar um veto presidencial. Longe de ser crime, a decisão beneficiava os servidores que “apenas” estão arriscando suas vidas no trabalho de combate à pandemia da covid-19, os profissionais de saúde e de segurança pública. E a exceção para esses servidores havia sido combinada entre o Legislativo e o Executivo.
Não se trata aqui de defender a gastança. Trata-se de sugerir que não se faça terror com gastos públicos. Esse comportamento faz com que não se diferenciem, por exemplo, investimentos de despesas correntes na emenda do teto de gastos. Por isso, os investimentos públicos estão caindo a zero e aposta-se no investimento privado, que naturalmente se contrai quando o investidor não sente que há a mesma intenção do lado do governo.
O terrorismo fiscal faz com que haja um desleixo enorme na condução de programas sociais, de saúde e educação. Faz, por exemplo, um governador de Estado garfar recursos de universidades e de fundações que fazem pesquisas.
Em meio à pandemia, o governo rendeu-se a evidências e criou o auxílio emergencial. Contido pelo terror fiscal, ofereceu R$ 200 por mês, mas, forçado pelo Congresso e pelo tamanho da tragédia que se anunciava, chegou aos R$ 600. Em pouco tempo, percebeu o potencial eleitoreiro da medida e agora busca desesperadamente uma fórmula para perpetuá-lo, mas com “responsabilidade fiscal”, essa expressão que também já cansou.
Uma coisa é cultivar a austeridade e o controle persistente de gastos, algo fundamental em qualquer governo. Outra coisa é fazer terrorismo fiscal, defender a penúria da administração pública por dogma. No dicionário, terrorismo é definido como o uso contínuo e sistemático de violência para provocar medo ou alcançar um certo objetivo político. Na área fiscal, isso abre espaço para a imposição de “castigos sociais” ou para a criação de impostos, como a CPMF, tributo execrado pelo país no passado recente e que ameaça voltar.
Em resumo, o terrorismo fiscal faz com que a quantidade do gasto público seja mais controlada do que a qualidade. E isso é um desastre.
Dilema dos fiscalistas
Mudando de assunto, mas nem tanto, os fiscalistas radicais que apoiam o governo estão num dilema atroz. Por convicção, gostariam de contrariar abertamente a flexibilização dos gastos públicos, principalmente a perenização do auxílio emergencial. Sempre disseram que isso poderia quebrar o país. Mas estão vendo que esse auxílio está abrindo a possibilidade de reeleição do presidente, algo que parecia improvável no início da pandemia, quando o apoio ao presidente caiu abruptamente.
As últimas pesquisas mostraram que a taxa de rejeição ao presidente caiu de 52% para 35% no Nordeste, território tradicionalmente petista.
No outro lado, os críticos do fiscalismo radical, que sempre defenderam o aumento dos valores dos programas de apoio social, veem agora que o presidente entendeu a importância desses benefícios para impulsionar sua reeleição. Terão, então, de argumentar e eventualmente votar no Congresso contra a ampliação da ajuda emergencial e outros programas de auxílio.
E agora, como manter coerência e convicções?
Nenhum comentário:
Postar um comentário