terça-feira, 25 de agosto de 2020

Míriam Leitão - Palavras torpes e mente autoritária

- O Globo

O presidente Jair Bolsonaro deveria ter se antecipado e prestado contas ao país das muitas dúvidas sobre as finanças da sua família. A nação tem o direito de saber. O jornalista do GLOBO fez a pergunta certa e necessária. A ameaça de “encher a sua boca de porrada” que ele disparou ao repórter é recorrente e reveladora. Ele quer uma imprensa domesticada que o exalte, como todo ditador. Bolsonaro tem um projeto autoritário de poder, já demonstrou inúmeras vezes, verbaliza com frequência, distorce, mente, atropela limites institucionais, e usa as Forças Armadas como escudo para ameaçar os outros brasileiros. As autoridades do Congresso e da Justiça que não querem ver essa realidade, colaboram com esse projeto.

Ontem o país ultrapassou os 115 mil mortos pela pandemia. Na cerimônia “Brasil vencendo o Covid-19” — fora do tom e sem propósito — o presidente foi aplaudido de pé dentro do Palácio do Planalto depois de agredir os fatos, a imprensa e o ex-ministro da Saúde. Congratulou seu governo por ter indicado o uso da cloroquina, disse que muitas das 115 mil vidas perdidas poderiam ter sido salvas com o remédio, jogou culpas sobre Luiz Henrique Mandetta, repetiu que o Supremo “o alijou” do combate à pandemia e depois ofendeu de novo os jornalistas.

— Aquela história de atleta... que o pessoal da imprensa vai para o deboche. Mas quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor. Só sabe fazer maldade, usam a caneta com maldade.

Além de tentar atingir os jornalistas com mais uma palavra torpe, o que ele faz é ofender os doentes e até os mortos. Se ele define como bundões os que têm mais risco de morrer, se ele vive se referindo ao seu passado de atleta e diz que a doença tem que ser enfrentada “como um homem”, os que perderam a batalha têm culpa de seu próprio destino?

A pessoa pública deve prestar contas e esclarecer zonas de sombra e dúvidas. É inerente aos cargos que ocupam. Não há motivo aparente para que Fabrício Queiroz e sua mulher Márcia façam depósitos na conta de Michelle Bolsonaro. Eles eram funcionários do gabinete do filho mais velho do presidente. O caso todo é uma coleção de dúvidas. Os excessos de depósitos em espécie na conta de Flávio Bolsonaro, os funcionários fantasmas que ocupavam aquela folha salarial, ter parentes do miliciano Adriano da Nóbrega entre esses falsos servidores. De um lado, o senador Flávio Bolsonaro em vez de se explicar, faz chicana. De outro, o presidente da República, em vez de responder, ameaça de agressão física o jornalista que perguntou. Mais de um milhão de tuítes repetiram a mesma pergunta e ela permanece no ar. Por que aqueles depósitos foram feitos na conta da mulher do presidente?

O risco de o país se acostumar está presente o tempo todo. Nos pouco mais de 60 dias em que Bolsonaro falou menos barbaridades, muitos passaram a considerar que agora ele estava estabilizado, teria sido enquadrado pelas instituições. O ministro Jorge Oliveira disse ao “Valor” que o presidente é “veemente”. Ora, ministro, procure outra palavra que defina com mais exatidão a arrogância, a agressividade, os ataques do presidente aos que ele escolheu como inimigos.

Quando Bolsonaro moderou o tom não foi por ter entendido o decoro do cargo, mas porque teve medo. Ele submergiu logo após Queiroz ter sido encontrado na casa do advogado Frederick Wassef que defendeu o presidente e era advogado de Flávio quando abrigou a peça-chave para esclarecer o que se passava no gabinete do agora senador.

Bolsonaro tem usado as Forças Armadas no mesmo estilo de Hugo Chávez. Como Chávez, ele chegou ao governo pela via democrática, como o ex-ditador venezuelano ele também não tem apreço pelas instituições democráticas. Na Venezuela, o orçamento privilegiou os gastos da Defesa para costurar essa lealdade militar. Essa história não terminou bem lá, não terminará bem aqui, a menos que o país se defenda de um jogo já conhecido. O passo agora é usar os recursos públicos para cimentar seu populismo. Na Venezuela foi assim também. O dinheiro dos nossos impostos deve chegar a quem mais precisa, mas não pode ser apresentado como doação do líder magnânimo às massas. Contudo, é para sustentar essa visão que se trabalha no governo em todas as áreas, inclusive na economia.

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