- Valor Econômico
Com compaixão, técnicos poderiam ser mais criativos
Antes de o presidente Jair Bolsonaro ameaçar tirar do bolso seu cartão vermelho populista e interromper o debate sobre a criação do programa Renda Brasil, a ideia do Ministério da Economia de congelar os benefícios da Previdência fazia sucesso no Congresso.
Para manter a gentileza, vamos considerar apenas que o senador Márcio Bittar, do MDB do Acre, escorregou ao dizer que “a indexação é algo de viés esquerdista, daqueles que acham que o Estado tem que interferir nesse nível”.
A história da indexação no Brasil é relativamente recente, bastante interessante e sua criação nada tem a ver com a esquerda. Ao contrário, derrubado o esquerdista João Goulart, pelo golpe militar de 1964, os ministros do Planejamento, Roberto Campos, e da Fazenda, Otávio Gouveia de Bulhões, instituíram a correção monetária no Brasil.
À dupla Campos-Bulhões nem de longe se pode atribuir algum viés esquerdista. Mas foram eles que, naquele ano fatídico, logo após o golpe, criaram a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN).
Bulhões (1906-1990) foi sem dúvida um gênio de sua geração. Roberto de Oliveira Campos (1917-2001) também, embora muito mais controverso. Ambos, porém, eram liberais convictos e o segundo sempre foi odiado pela esquerda. Foram eles que introduziram no Brasil uma experiência que já havia sido testada em alguns países no combate à inflação, o câncer econômico do terceiro mundo na segunda metade do século 20.
Foi com a ORTN que se introduziu no Brasil a indexação, algo que sobrevive até hoje em muitas áreas. Esse título público remunerava os investidores, pela primeira vez no país, com base na inflação passada. Nascia aí a correção monetária, que logo depois passou a ser usada também para os depósitos a prazo, no Sistema Financeiro Habitacional e nos balanços das empresas.
Quem viveu esses tempos se lembra que a correção monetária era cantada em prosa e verso como uma genialidade brasileira. Embora algumas experiências tivessem sido feitas na França e na Finlândia, em nenhum país a indexação havia sido utilizada com tanta amplitude. Era uma verdadeira “jabuticaba” brasileira, embora esse termo não fosse ainda utilizado na época. Economistas do mundo todo vinham ao Brasil para estudar como o país havia encontrado uma maneira perfeita de neutralizar os males da inflação. Se tudo era corrigido de acordo com a inflação passada, ninguém precisava se preocupar com as perdas inflacionárias. Mas a indexação foi avançando, atingiu salários, que em certo momento passaram a ser corrigidos mensalmente, alugueis e se estabeleceu em quase todos os contratos. A consequência foi a famosa inércia inflacionária, que levou país à hiperinflação de 2.708% em 1993.
Campos e Bulhões são culpados pelo desastre da hiperinflação dos anos 1980 e 1990, só interrompido pelo Plano Real? Não. Eles queriam, segundo o próprio Campos, “um instrumento de transição, que tenderia a desaparecer”. Pelo menos foi o que ele disse depois que o desastre inflacionário se estabeleceu no país. E também havia outros fatores, além da inércia criada pela indexação, que impulsionavam a disparada de preços na economia brasileira.
Voltemos então ao Brasil de hoje. O senador Márcio Bittar, que é o relator da PEC do Pacto Federativo e do Orçamento de 2021, diz ser favorável à ideia de desindexar o salário mínimo por dois anos. E o secretário especial da Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, defende a desindexação dos benefícios previdenciários.
Vamos deixar claro: desindexação de benefícios previdenciários significa congelar a remuneração dos aposentados e reduzir seu valor real. Isso daria, pelo cálculo do governo, ganho de R$ 58 bilhões em dois anos, 2021 e 2022.
O senador e o secretário talvez não tenham opinião formada sobre a criação da correção monetária pela dupla Campos-Bulhões.
Provavelmente estejam preocupados apenas com os gastos do governo. Só não se dão conta de que a indexação não foi extinta no país e continua vigorando em inúmeros setores, em contratos de aluguéis, concessões etc. Os vários atores da economia continuam resguardados de uma possível surpresa inflacionária que inviabilize seus negócios, ainda que hoje essa ameaça seja pouco provável. Por que pretendem afinal apenas cobrar dos velhos aposentados essa conta? Por crueldade? Ou porque os prejudicados são indefesos?
Mesmo espremido contra a parede pelo teto de gastos, mais por instinto eleitoral do que por compaixão, Bolsonaro acabou com essa brincadeira da desindexação, que criaria recursos para sustentar o Renda Brasil. Enterrou o pretendido programa, chancelou o Bolsa Família num discurso lulista e ameaçou puxar o cartão vermelho para quem voltar a falar em extinção do programa criado pelos petistas.O fato é que os fiscalistas não se cansam de planejar maldades.
Acabaram de aprovar uma reforma da Previdência que pode dar, segundo os cálculos deles mesmos, quase R$ 1 trilhão de economia ao setor público em dez anos. Mas continuam tentando acabar, sempre que têm chance, com a garantia do reajuste do salário mínimo e com outros benefícios sociais. Se tivessem boa memória e um pouco de compaixão, poderiam ser mais criativos e menos maldosos.
E se lembrariam dos anos em que os benefícios previdenciários, sem a garantia da indexação, foram de tal maneira desvalorizados que muitos aposentados iam à Caixa Econômica recebê-los a cada seis meses, porque seu valor mensal mal dava para pagar a passagem do ônibus.
Certa vez perguntaram ao dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues (1916-1980), em um programa de televisão, qual conselho daria aos jovens. Com sua voz grave, ele respondeu numa só palavra:
“Envelheçam”. Ser velho tem poucas vantagens, mas uma delas é que, sem recorrer a livros, pode-se lembrar, enquanto o cérebro ainda funciona, de coisas que deram certo ou errado por se ter presenciado os fatos.
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