sábado, 7 de novembro de 2020

Ascânio Seleme - O fim de um pesadelo

- O Globo

A iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade

iminente derrota de Donald Trump, muito mais do que a vitória de Joe Biden, tranquiliza o mundo e acalma os sentidos da humanidade. Esta talvez seja a única boa notícia de 2020 até aqui. Melhor do que isso, quem sabe, pode ser o desenvolvimento final de uma vacina eficiente contra o coronavírus. Mas ainda assim, e apesar de a vacina ter o poder de salvar milhares de vidas que seriam perdidas prematuramente, a saída de cena do megalomaníaco Trump produz um grau também muito elevado de relaxamento, porque era grande o risco dele permanecer infernizando o mundo por mais quatro anos.

A saída de Trump representaria um recomeço para o mundo. Desaparecera a espada que pairava sobre o globo presa apenas nas mãos de um líder errático, egocêntrico e mentiroso. Se o mundo respirar aliviado com a vitória de Biden, os Estados Unidos terão de procurar entender o recado das urnas. O mais importante deles talvez seja a mensagem de respeito absoluto à democracia, onde quem manda é o eleitor, e ponto final. Mesmo com as imperfeições do modelo eleitoral americano, quem votou e deve eleger um novo presidente foi o eleitor.

Outra vencedora desta eleição foi a verdade. O maior mentiroso que já ocupou o Salão Oval deve deixar o poder acumulando extraordinárias 20 mil mentiras contabilizadas pelo jornal “The Washington Post” até agosto. Embora metade do país tenha votado em Trump, e destes muitos compraram e seguirão comprando as lorotas do presidente derrotado e seus alucinados seguidores, o fato é que a maioria foi às urnas e votou também massivamente num partido que absolutamente não é socialista, como Trump insistia em proclamar.

Restabelecida a verdade, falta ainda aos EUA recuperarem sua dignidade. Trump transformou o país numa chacota global, como Bolsonaro fez com o Brasil. A diferença entre os dois é que um é periférico e outro comanda a maior potência econômica e militar do planeta. Joe Biden é muito bem talhado para esta tarefa. Não importa como seja a saída de Trump, confirmada sua derrota, se esperneando como um menino mal-educado ou de modo civilizado, quem deverá mandar a partir do dia 20 de janeiro de 2021 será um homem educado, tolerante e conciliador.

Mesmo que Trump bata o pé e faça birra, insistindo com suas diversas ações nos tribunais regionais e na Suprema Corte, o resultado final será mais uma derrota para ele. Sem qualquer evidência que sustente as acusações de fraudes eleitorais que fez, as ações são ridículas e serão desconsideradas pela Justiça. Nesta empreitada, Trump já perdeu o apoio da sua maior aliada na mídia, a Fox News, que condenou a iniciativa. Falta perder o suporte do seu partido.

Ao ser retirado do ar na noite de quinta-feira por emissoras de TV americanas, quando fazia um pronunciamento na sala de imprensa da Casa Branca, Trump mentia descaradamente sobre como as alegadas fraudes se processavam. Os veículos que o silenciaram disseram que não podiam permanecer trazendo ao público americano mentiras que desinformavam quando sua missão é exatamente o contrário, bem informar a população.

Se a onda azul esperada não aconteceu, é verdade também que a vitória desenhada de Biden não será por pequena margem como se chegou a imaginar. O número de delegados no Colégio Eleitoral de Biden pode ser exatamente igual àquele que levou Trump para a Casa Branca em 2016. As filas de votação em plena pandemia, onde pessoas passaram até dez horas para votar, provam que os americanos entenderam o que estava em jogo. Por isso também esta eleição teve recorde de eleitores e o vencedor passa a ser o presidente com o maior número de votos da História.

No Brasil temos um problema interessante a ser considerado a partir de agora. Confirmada a vitória de Biden, o presidente Jair Bolsonaro terá de se adaptar aos novos tempo. Vai ser difícil. Por ora, o governo do Brasil pode se tornar em adversário das duas maiores potências globais, a China e agora os EUA. Para se reposicionar globalmente, terá de dar uma guinada de 180° na política externa e demitir o aloprado chanceler Ernesto Araújo. São novos tempos, absolutamente diferentes do que vivemos até aqui. Quem não se recolocar rapidamente, vai comer poeira.

Escapamos, Lenin

“A democracia alimenta os germes da sua própria destruição”. A frase é de Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, líder máximo da revolução soviética de 1917. “A democracia dá a cada um o direito de ser o seu próprio opressor”. Esta é do poeta, escritor, diplomata e abolicionista do século XIX James Russell Lowell. O que ambos queriam dizer é que é bem possível transformar uma democracia numa outra coisa qualquer através do voto. Basta votar errado. Os Estados Unidos tiveram tempo e clareza e estão prestes a impedir que o erro cometido em 2016 seja consolidado este ano.

Não sonhe

Quem acha que o presidente Jair Bolsonaro vai se reagrupar globalmente se Donald Trump for derrotado é melhor colocar as barbas de molho. Se internamente houve um reagrupamento, ele se deu em razão da habilidade do centrão e da fraqueza política do capitão. No plano externo, o Brasil vai precisar retomar o caminho da lucidez e do bom senso, no caso de Biden vencer. Além de demitir o chanceler Ernesto Araújo, o Brasil terá também de rever sua política ambiental, se quiser construir um entendimento com a nova Casa Branca. Neste caso, Ricardo Salles também terá de pirulitar.

Era da lorota

Eles se parecem até nisso. O filho de Donald Trump é tão primário quanto os três zeros de Bolsonaro. Não é necessário citar as besteiras que Eric Trump escreveu no Twitter, que as apagou por atentarem contra a democracia. No Brasil, você viu, o zerinho Eduardo Bolsonaro atacou a eleição americana e acusou Biden de fraudá-la. Claro que sem provas. O que os iguala é a impressão que têm de que as pessoas vão engolir todas as mentiras e invenções que colocam nas suas redes sociais. Pelo que se viu nos EUA, a era da lorota parece estar chegando ao fim.

Biden e as artes

Diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos a arte não precisa necessariamente do dinheiro de empresas privadas e muito menos de dinheiro público para sobreviver. Os negócios da cultura são muito bem consolidados, e o público americano é mais maduro que o brasileiro. Mas ainda assim, é reconfortante saber que o provável presidente eleito Joe Biden é um entusiasta e um estimulador da arte. Segundo reportagem de Graham Bowley, do jornal “The New York Times”, Biden sempre viu a arte como “um instrumento importante para a economia, um gatilho para a ação política e um agente de construção comunitária”. De acordo com depoimento ao “NYT” feito por Robert L. Lynch, presidente do movimento “Americans for the Arts”, a atitude de Biden em relação à arte “é menor do ponto de vista do consumidor de cultura e mais de acordo com os valores inspiracionais e de transformação” que ela pode produzir na sociedade.

O que vale mais

“Em campanha eleitoral não importa apenas o que você apoia, mas também o que você é contra”. A frase é do personagem Eli Gold, um estrategista político da série “The Good Wife”. Ele explica a Alicia Florrick, a estrela da série e candidata a um cargo eletivo, que não basta apenas você apontar os bons caminhos que pretende percorrer se eleito, mas também os caminhos que vai necessariamente evitar na jornada. Biden deve ganhar porque disse claramente aos eleitores americanos que não seguiria pela trilha do moribundo Trump.

Bom para o Brasil

A eleição dos Estados Unidos prova a força do eleitor. Mesmo em meio a uma pandemia letal, milhões de eleitores bateram recorde e foram às urnas para julgar o governo de Donald Trump. O mesmo vigor que rejeitou Hillary Clinton há quatro anos, pode sabotar agora o homem que a derrotou. O exemplo americano precisa ser observado mundo afora, e especialmente aqui, porque todos sabem que o que é bom para os EUA é bom para o Brasil.

Gota a gota

Você pode dizer tudo sobre a eleição presidencial americana, menos que ela não foi emocionante.

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