Campanha
contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade
O
obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em
1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como
empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz,
diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas
primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja
imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.
Depois
de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de
outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já
naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como
exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e
florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como
pretexto para tentar derrubar o presidente.
A
contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do
Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas
foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900
presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre.
Muitos feridos.
Até
Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda
ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a
epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e
a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em
1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o
flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil
desinfectado, que nos veio a legar”.
Em
plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por
interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua
obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando
os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele
mesmo sancionada. E daí?
No
campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a
obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à
vacinação os menores sob sua guarda.
A
prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei
n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei,
as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as
seguintes medidas: (...) III - determinação compulsória de (...) d) vacinação”.
Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos
gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que
cientificamente recomendada a providência.
Na
Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º,
segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade
livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se
protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A
solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros
como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297),
significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de
Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos
por grande cordão umbilical.
Pela
via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir
concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da
República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade
e Responsabilidade, pág. 313).
Como
transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão,
pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na
precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela
Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.
Como
elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais,
pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa
um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao
Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas
preventivas e curativas.
Em
outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação
a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a
“reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio
da solidariedade.
Assim,
campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não
reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a
ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o
artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente
em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização,
objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
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