Joe Biden parecia a pessoa
errada mas passou todo o tempo provando ser a pessoa certa. Era preciso saber
escalar quem enfrentaria nas urnas o presidente mais perigoso da história para
a democracia americana. O Partido Democrata o escolheu. Joe Biden não tem a
popularidade de Bernie Sanders, a combatividade de Elizabeth Warren, é um homem
branco, o mais velho a postular o cargo, sem carisma, sem o dom da oratória e,
como ele mesmo tornou público, foi gago. Além disso, foi acusado durante as
primárias — época de explicitar divergências partidárias internas — de ser
próximo demais de republicanos. Ele venceu as eleições contra o presidente que
mais usou a presidência para os seus propósitos eleitorais. Onde foi que ele
acertou?
Ele acertou em chamar
Kamala Harris para a sua chapa. Ela representa um outro patamar no nível de
representatividade que toda democracia deve almejar. Primeira em muitos
quesitos. Mulher, negra, filha de um latino e uma asiática, casada com um
judeu. Quando ela se sentar na sala de vice-presidente dos Estados Unidos
muitas barreiras estarão sendo superadas. Com Kamala se retoma também a
caminhada dos negros para uma sociedade de iguais. À eleição de Barack Obama se
seguiu um movimento radical no sentido oposto. O presidente Donald Trump é supremacista,
como tornou evidente.
Joe Biden acertou em ser
ele mesmo. A empatia que todos dizem ser da sua natureza foi mostrada na
campanha. E esse era um elemento que faltava na política do país mais atingido
pela pandemia de Covid-19. Seus dramas pessoais foram muitos e são conhecidos.
Ele os expôs na medida certa. A morte da mulher e da filha bebê, seu esforço
para ser pai e mãe dos filhos pequenos na viuvez e manter seu mandato de
senador, o golpe da morte do filho Beau de câncer no cérebro. Até o fato de ser
gago foi mostrado na história de um menino a quem ele tem estimulado na
superação da dificuldade. Enfim, ele não era o super-homem que enfrentaria o
mal. Era mesmo o Joe.
Ser normal diante de tanta
anomalia trumpista foi um ativo. Mas houve outros improváveis caminhos do
sucesso. Na primeira vez que tentou disputar as primárias, era jovem, pouco
mais de 40 anos. Na segunda vez, perdeu para Barack Obama e virou seu vice e
amigo. Agora não seria tarde demais? Os avanços da ciência nos trouxeram a longevidade,
mas a pandemia, subitamente, mostrou aos mais velhos o quanto eles são
vulneráveis. O candidato expôs esse sentimento misto. É um veterano ainda em
busca do seu sonho maior, mas ao mesmo tempo fez uma campanha cuidadosa, sem
aglomerações, com uso insistente de máscara. Foi até alvo de deboche de Donald
Trump por usar supostamente máscaras enormes. Joe Biden mostrou saber que a
vida é frágil. Um sentimento que compartilha com tantos num país em que o vírus
contaminou 10 milhões, atinge mais de 100 mil todos os dias e matou 240 mil
pessoas. Só na semana passada, os EUA tiveram 650 mil novos casos, mais do que
a Alemanha durante toda a pandemia.
Biden acertou em costurar
uma coalizão agregando forças dentro do partido e na sociedade. Sua campanha
atraiu independentes e até republicanos, o que mostrou uma capacidade de
diálogo que será muito exigida nos próximos e difíceis anos que os Estados
Unidos têm pela frente no trabalho de reconstrução. Destruir é fácil, e foi a
essa tarefa que se dedicou Donald Trump. Ele demoliu muitas pontes com países
aliados. Hostilizou o Canadá, tratou de forma arrogante países europeus, a tal
ponto que a chanceler Angela Merkel disse que até agora não entendeu como os
americanos escolheram Trump. Biden terá que buscar os organismos multilaterais
maltratados e acordos abandonados por Trump. E, nesse caminho, nós sempre
teremos Paris. O Acordo de Paris.
No primeiro debate, Trump parecia ter engolido Joe Biden. Era o comunicador agressivo que impunha sua hora de falar, contra o homem que parecia travar em certos momentos. Quem estava certo? Qual é a melhor estratégia na eleição e na vida? A vitória eleitoral de Joe Biden inverte a avaliação sobre o que é sucesso. A vitória não é impor-se. É convencer. Sem a capa da invencibilidade que o seu adversário exibe, Joe Biden derrotou o maior perigo que já rondou a América.
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