- Política
A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos
Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que
havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de
Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala
Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a
primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar
a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de
uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois.
Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a
diversidade americana no caminho da plena cidadania.
A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela
primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa
luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à
Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania
política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação
e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este
bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais
claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados
ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça,
cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e
sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e
seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo
casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.
Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade
policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O
assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se
o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à
trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris
na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder
imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air
Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados
Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no
poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem
é trivial.
Este resultado é importante, também porque demonstra,
inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou
numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu
disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O
Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo
de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque
às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por
duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras
de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios
eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao
contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança
sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a
dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos
antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente
por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta
maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem
aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a
insensatez.
Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla
coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do
partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades
republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os
movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como
representante Kamala Harris.
No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias
implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais,
por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação
para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas
as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do
multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a
governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a
crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.
Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos
Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário,
no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços
significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris,
presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de
volta à trilha do futuro.
*Sérgio Abranches, cientista político
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