Numa
cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais
do que a vacina
‘Bem-vindo ao inferno’ anunciava em inglês a
gigantesca faixa levada por policiais no Aeroporto Internacional do Galeão, no
Rio de Janeiro, numa manhã radiosa de julho de 2016. Na Cidade Maravilhosa que
escancarava seu abraço a turistas e atletas olímpicos do mundo inteiro, o
protesto informava que, devido ao atraso no salário dos agentes de segurança, a
Rio-2016 era um território sem lei. “Estamos morrendo. Os criminosos olham para
a nossa identidade e nos matam”, acrescentava a faixa.
Neste
início de 2021, basta substituir “criminosos” por “governantes” ou, ainda
melhor, juntá-los como “governantes criminosos”, e temos o retrato do horror
nacional. O inferno é aqui . O Brasil inteiro está no direito de se insurgir,
de cobrar responsabilidade, ação, vergonha na cara — não de quem já é
criminoso, mas de quem silencia apesar de ter voz e poder. A começar pelo
Congresso Nacional.
De Jair Bolsonaro nada há a esperar. Como escreveu a jornalista Eliane Brum, “afirmar que Bolsonaro é incompetente ao tratar da Covid-19 é colaborar com ele. A negligência é deliberada. Não é incompetência para enfrentar a Covid, e sim, competência para o extermínio”. Gritar contra a montanha de inépcias das três esferas do poder (prefeituras, estados, Brasília) no combate ao coronavírus aplaca momentaneamente nossa consciência, alivia por um átimo a sensação de impotência. Mas até para gritar é preciso ter ar, conseguir respirar, sair da asfixia interior na qual estávamos confinados até sermos sacudidos pelo sufocamento real de Manaus.
“Fizemos
nossa parte”, diz Bolsonaro sobre as pilhas de cadáveres que haverão de
alicerçar seu lugar na história. “Imposição de disciplina em cima do brasileiro
não funciona”, emenda o general da reserva e dublê de vice Hamilton Mourão,
como se a obrigatoriedade do cinto de segurança e a proibição de fumar não
vigorassem no país. O que não funciona em cima do brasileiro , general, é o
descaso com a vida física para aniquilar a vida democrática do país.
“Temos aqui um mundo em desordem/ Quem então
está pronto/ Para lhe devolver ordem?”, perguntava Bertolt Brecht na estrofe
cantada de uma peça que jamais concluiu. Na semana passada, faltando apenas duas
semanas para Donald Trump deixar o poder, o Legislativo dos EUA deu seu passo
para interromper a desordem revolta: mesmo sitiados no Capitólio, democratas e
alguns republicanos ratificaram a vitória de Joe Biden na eleição de novembro.
Quatro dias depois, aprovaram o impeachment do Aprendiz de Déspota. A desordem
e a violência emanada da Casa Branca haviam atingido níveis alarmantes de
sedição e violência.
O
mais alarmante, no caso de Trump, talvez tenha sido a extorsão que o 45º
presidente e seus celerados haviam tentado impor aos legisladores: a ameaça de
que a violência poderia ser ainda maior e mais errática, caso mexessem com o
líder do culto. Quase deu certo por lá. E pode parecer sedutora para outros
aprendizes agarrados ao poder. Tragicamente, no Brasil, foi preciso
testemunharmos a asfixia nos hospitais, lares e ruas de Manaus para o despertar
da sociedade antes da débâcle nacional.
Poucos
dias atrás, o alemão Jürgen Stock, secretário-geral da Interpol, alertava o
mundo para o fato de vacinas contra a Covid terem se tornado “o ouro líquido do
momento”. Contrabando, mercado ilegal, contrafações, roubos audaciosos e
leilões clandestinos estarão na mira da agência de 194 países-membros. Mas
Stock certamente nunca imaginou que, num país moribundo chamado Brasil, e numa
cidade agonizante chamada Manaus, um cilindro de oxigênio pode valer ainda mais
do que a vacina. Até porque é preciso estar vivo para almejar a chegada da
vacina.
E, por falar nela, roga-se o impossível a prefeitos, governadores e ao presidente da República que veem na vacina o cabo eleitoral supremo: sumam da foto. Nenhum país civilizado inaugurou o tão ansiado processo de imunização com protagonismo político personalista. O governador em exercício no Rio planeja um “ato” no Cristo Redentor. O de São Paulo e o capitão de Brasília só pensam em obscurecer o outro na foto. Talvez seja hora de a imprensa responsável não embarcar nessas pataquadas. O braço estendido de um cidadão comum recebendo a vacina por um profissional de saúde também anônimo num hospital público do SUS é o maior incentivo para injetar o Brasil de esperança. E retratar o que o país tem de melhor.
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