É
o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo niilista
Depois
dos espantosos acontecimentos sucessivos à derrota eleitoral de Donald Trump,
que culminaram no assalto ao Capitólio, acompanhado em tempo real por todo o
mundo, pode-se afirmar que a esfinge do nacional-populismo contemporâneo não
guarda nenhum segredo para ninguém.
Singularmente
reativos à globalização e à construção de uma ordem internacional capaz de
regular minimamente essa mesma globalização, que confundem de propósito com um
fantasmagórico “governo mundial”, os diferentes nacionalismos mundializaram-se
à sua maneira e renderam-se, ainda que de modo enviesado, às novas realidades.
Não é de estranhar, por isso, que tenham até subtraído do movimento histórico
dos trabalhadores a ideia de uma “internacional” que informalmente os congrega
e entre eles difunde experiências “revolucionárias” ou que parodiam
grotescamente as velhas revoluções.
Nada
difícil, também, imaginar que serão bem parecidos os problemas que colocam, ou
ainda vão colocar, para cada uma das democracias em cuja sala de comando já
entraram ou ameaçam entrar. E cabe falar propriamente de ameaça, pois, como o
caso norte-americano deixa evidente, trata-se de grupos com pretensões
antissistêmicas, avessos à ideia simples, mas fundamental, de que eleições
podem ser ganhas ou perdidas e que uma democracia de verdade repousa na
recíproca legitimação dos contendores. Ninguém está fora do jogo, desde que
recuse a violência e demonstre lealdade às instituições e suas normas, escritas
ou não.
Chega a ser obsceno, depois da trágica experiência dos totalitarismos do século 20, transformar adversários em “inimigos internos” ou “traidores da pátria”, como se fazia, e se faz, nas ditaduras de qualquer tipo ou natureza – nas que se instauraram em nome da “segurança nacional” e nas que aviltaram a palavra “socialismo”. Por esse caminho se abdica da lógica política em favor da lógica da guerra e se entra num campo minado onde o combate salutar entre partidos, que sempre supõe acordos e compromissos, degenera no jogo feroz de facções inconciliáveis. Partidos e outros atores razoáveis são elementos de civilização, mesmo quando se defrontam duramente; facções são fatores de barbárie, ruína e perdição.
A
experiência norte-americana dos nossos dias é ilustrativa, sob uma série de
aspectos. O que impressiona, já à primeira vista, são os sintomas de loucura de
massas advindos do que o angolano José Eduardo Agualusa, com mira certeira,
chamou de corrupção da realidade. A fabricação consciente de “fatos
alternativos”, ao que se diz, aproxima a Rússia putinista e a versão trumpista
dos Estados Unidos, mas, evidentemente, há mais gente mundo afora envolvida
nesse festim diabólico. Se, seguindo uma boa tradição de pensamento social,
devemos considerar os fenômenos ideológicos uma realidade material como
qualquer outra, e não mera aparência maldosamente arquitetada pelas “classes
dominantes”, há na desfaçatez com que se mente, no volume e na velocidade com
que se aciona o mecanismo propagador de absurdos, algo pérfido e doloso.
Mente-se,
hoje, para pôr de pé estratégias manipulatórias como talvez nunca tenhamos
visto antes, até porque estamos às voltas com a irrupção impetuosa da internet
e das redes sociais. Não a mentira piedosa, como a da trama do conhecido Adeus,
Lenin, filme em que o filho busca manter a mãe comunista, egressa de coma, na
ilusão de que a Alemanha Oriental ainda resistia e gozava de boa saúde, quando
o muro já tinha desabado havia meses e ela, a Alemanha Oriental, era mais um
retrato na parede.
Mente-se,
ao contrário, como estratégia determinada de grupos que aspiram à subversão da
ordem democrática, como nos Estados Unidos, ou à manutenção da ordem
autocrática, como na Rússia. Trata-se, quase se diria, de engano
deliberadamente construído, que, no entanto, amplas parcelas da população, com
menor ou nenhum grau de consciência, sofrem passivamente, entregando-se às mais
extravagantes teorias da conspiração e superstições pré-científicas e
anticientíficas.
Destroem-se
assim alguns dos consensos mais básicos que estruturam a vida em sociedade. A
deslegitimação das instituições – a começar do processo eleitoral, fundamento
das democracias sistematicamente posto sob suspeição por todos os candidatos a
autocrata – parece ser o resultado propositalmente buscado. E a realidade assim
corrompida é o cenário ideal para projetos de poder que mal disfarçam um fundo
niilista: o culto do homem providencial, a fixação no mando pelo mando, a
dominação bruta, sem capacidade de direção e convencimento.
Não
é a primeira vez que extremistas vestem fantasias “revolucionárias”, afirmando
representar o homem da rua contra elites degeneradas. Há quase cem anos houve
quem, na direita extrema, conjugasse demagogicamente “nacionalismo” e
“socialismo”, com os resultados sabidos. Só que agora, até mais do que antes,
podemos quase tocar com as mãos na dimensão universal da democracia e do
conjunto de valores, particularmente liberais, que ela por sua própria natureza
implica.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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