Há
motivos políticos para frear o excesso de poder concedido a homens que
construíram um império em um ambiente sem leis
Bilionários
podem se dar ao luxo de ser arrogantes sem que isso seja visto como um defeito,
como se com a riqueza viesse o perdão pelos maus modos. Nem sempre: tudo deu
errado para Jack Ma, o biliardário chinês dono do Alibaba. Ele mal teve tempo
de se arrepender de ter dito, em 24 de outubro, em evento financeiro que tinha
como participantes o vice-presidente Wang Qishan, ex-reguladores e altos
executivos dos bancos estatais, que banqueiros e órgãos de controle do país
tinham mentalidade de “casa de penhores” e pareciam-se com “clubes de velhos”.
A
reação do governo chinês foi fulminante e pode mudar não só a fortuna de Ma
como o destino de toda rede de finanças online. O maior IPO da história, o do
Ant, braço financeiro do Alibaba, estimado em US$ 37 bilhões, foi cancelado
abruptamente algumas horas antes de ocorrer. Há suspeitas de que as ordens
vieram de coma, diretamente de Xi Jinping, o presidente vitalício do país. A
partir daí, uma série de medidas de regulação para as gigantescas fintechs
chinesas foram expedidas para evitar a concentração de poder em meia dúzia de
empresas que estão se tornando “poderosas demais para falir”, nas palavras de
Guo Shuqing, presidente da Comissão de Regulação de Bancos e Seguros da China.
Há motivos políticos para frear o excesso de poder concedido a poucos homens que construíram um império em um ambiente sem leis, que lembra a saga dos ‘robber barons’ americanos. Eles passaram a dominar todas as ferramentas e meios que, no Ocidente, são usados para tentar mudar o destino de eleições, fomentar divergências, estimular oposições e empestear a atmosfera política. A ditadura chinesa é uma das mais avançadas em sistemas de controle e vigilância, com sua tecnologia de ponta voltada a esse fim - é, por exemplo, a líder mundial em reconhecimento facial. Pequim reconheceu que deu poderes demais a poucos e que chegou a hora de enquadrá-los.
Há
também os motivos econômicos e fazem sentido - excesso de poder e formação de
monopólios, práticas desleais para deslocar concorrentes ou aquisições para
matá-los no nascimento. Facebook, Amazon, Google, Apple enfrentam ofensiva
semelhante do Congresso americano e dos órgãos antitruste da União Europeia. Na
China, porém, o poder das “big techs” é consideravelmente maior.
A
proteção da privacidade de dados ou da liberdade não é respeitada na China - a
política de Estado é, ao contrário, a do maior controle possível sobre o
indivíduo. A ausência de regras, que se casa com as arbitrariedades do partido
único dominante, criou um problema político potencialmente sério para a
burocracia A escalada repressiva de Xi Jinping agora extravasou do campo
político para o econômico, até porque as possibilidades criadas na internet
para informação e diversão - duas áreas que consomem mais da metade do tempo
dos chineses nas redes - tornam cada vez mais difícil aos milhões de censores
chineses acompanhar e controlar tudo.
A
Alibaba de Jack Ma tem valor de mercado de US$ 713 bilhões, só atrás dos US$
743 bilhões da Tencent, o maior portal de internet da China. Ambas operam com
pagamentos e serviços financeiros variados - são bancos portáteis, enormes
supermercados financeiros às margens das obrigações que os bancos estatais, têm
de cumprir. O Alipay, app de pagamentos do Alibaba, tem 700 milhões de usuários
ativos e o WeChat Pay, da Tencent, informa que 80% dos pequenos e médios
comerciantes do país usavam seus serviços de pagamentos em janeiro (Financial
Times).
O
poder advindo dos ganhos iniciais exclusivos com inovação tomou naturalmente o
rumo das tentativas monopolistas, coibidas até certo ponto nas economias
capitalistas, mas surpreendentemente livres em uma economia supostamente
comunista. Lojas online da Alibaba exigem exclusividade não só dos que nela
pretendem vender, como também não aceitam pagamentos por meio de outros apps
que não os seus. As plataformas praticam preço abaixo dos custos, mudam preços
de acordo com as informações de consumo e renda dos clientes e coletam
ilegalmente dados sem que os clientes saibam - como o governo chinês, de modo
geral. De posse de dados sobre desejos, hábitos e gastos dos consumidores, as
grandes fintechs se lançaram na conquista de outros setores da economia, em um
caminho que tinha de passar também pelo setor financeiro.
As
práticas contra a concorrência, generalizadas, resultaram que a Alibaba hoje
controla quase 20% de todo o varejo chinês (e metade de todo o varejo online).
Uma comparação, para quem acha que a Amazon foi longe demais: ela controla 5%
das vendas do varejo dos EUA.
Jack
Ma transformou em 2014 o Alipay no Ant e se preparou para abrir seu capital. No
IPO, ele foi avaliado em US$ 316 bilhões, apenas US$ 3 bilhões a menos que o
maior banco americano, o JP MorganChase, segundo maior do mundo por valor de
mercado. Não é para menos: o Ant faz mais transações que a Visa e o Mastercard,
com US$ 17 trilhões transitando por seus apps móveis nos 12 meses findos em
junho.
O
governo chinês vai mudar o jogo. O Ant poderá ter de desmembrar suas áreas de
gestão de ativos, empréstimos, corretagem e seguros em outra empresa, que
ficará sob a regulação do Banco Central. Outra ideia é obrigá-la a bancar 30%
de seus empréstimos com recursos próprios, o que elevaria sua necessidade de
capital de US$ 14 bilhões a US$ 17 bilhões, mais de 40% do que obteria com o
IPO, e afetaria brutalmente seu valor. Contra a Alibaba foram abertas
investigações por práticas anti-concorrenciais.
A
retórica de Jack Ma, de que os bancos não gostam de emprestar dinheiro para os
pobres, como o Ant faz, teria grande poder de comoção em um regime comunista. A
China deixou de sê-lo e é um dos países de maior concentração de renda, onde o
1% mais rico detém 40% da riqueza, segundo o relatório de desigualdade da
Escola de Economia de Paris (Piketty).
Ma, a partir de 2018, é um dos 90 milhões de filiados ao Partido Comunista, mas isto provavelmente não o ajudará. Desde que resolveu dar lições aos burocratas de Xi Jinping e virar alvo de sua ira, sua fortuna, de US$ 50,9 bilhões, encolheu US$ 10 bilhões. É certo que ele nunca acabará sentado entre os pobres da Praça da Paz Celestial, pedindo esmolas, como eles fazem, como aplicativos de celular, como o Alipay que Ma criou. Nem estará na cadeia para sempre, como os responsáveis por pirâmides financeiras no país. O fato é que, depois de um par de frases, seu fado mudou.
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