Pandemia
levará presidente a formar coalizão com o Centrão e a intensificar agenda conservadora
de costumes
O
acontecimento de maior relevância política do ano de 2020 não foi propriamente
um evento político, mas sanitário: a covid-19.
A pandemia causada pelo novo coronavírus foi um choque exógeno tão devastador
que, ao gerar medos e incertezas sem precedentes, produziu efeitos políticos de
grande magnitude.
As
três rodadas da pesquisa de opinião que desenvolvi ao longo do ano, em parceria
com Amanda Medeiros e Frederico Bertholini e com o apoio
da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Estadão, mostrou
que a pandemia alterou, de forma inequívoca, os eixos da polarização política
no Brasil.
Por
um lado, a ideologia política perdeu capacidade de explicar o comportamento das
pessoas e suas próprias crenças. Ser de esquerda ou de direita deixou de ter
importância diante do “medo da morte”. Por outro lado, os vínculos afetivos de
pertencimento a um grupo (ou de aversão ao grupo rival) baseados em identidades
valorativas de seus membros ganharam preponderância explicativa e passaram a
nortear a principal clivagem política: aprovar ou rejeitar o governo do
presidente Jair Bolsonaro.
Esta nova polarização se consolidou a partir de quatro reações de Bolsonaro em relação à pandemia: 1) minimização da gravidade e dos riscos de contágio da doença; 2) oposição às medidas de isolamento social; 3) valorização dos impactos negativos que as medidas de isolamento social trariam para a economia; e 4) oposição à obrigatoriedade da vacina.
Ficou
evidente que um contingente não trivial de eleitores, incluindo muitos que
votaram em Bolsonaro em 2018, passou a rejeitar o presidente da República. Esta
rejeição foi diretamente proporcional à proximidade a pessoas que se
contaminaram e desenvolveram a covid-19 com graus variados de gravidade. Quanto
maior o “medo da morte”, maior a rejeição ao presidente, independentemente da
ideologia ou da renda. Por outro lado, o grupo de eleitores que se conecta com
Bolsonaro por meio de identidades conservadoras passou a aprovar ainda mais o
presidente.
A
Figura abaixo exemplifica claramente essa nova clivagem política. Embora a
concordância com o isolamento social tenha perdido força ao longo das três
rodadas da pesquisa, fica claro que quanto maior a rejeição a Bolsonaro, maior
o apoio ao isolamento social e vice-versa.
Além
de perder capital político com a gerência da pandemia, Bolsonaro assumiu uma
atitude conflituosa com os outros Poderes, levando seu governo a sofrer várias
derrotas no Legislativo e no Judiciário. As organizações de controle também
aumentaram o cerco às atividades suspeitas de seus filhos, acusados de
envolvimento com “rachadinhas”, com lavagem de dinheiro e com o crime
organizado.
Para
evitar que o fantasma do impeachment voltasse mais uma vez a rondar o Palácio
do Planalto, o presidente, que se elegeu negando a política e os partidos, fez
uma das maiores inflexões da história da República. Converteu-se às
instituições do sistema político brasileiro ao se aproximar dos partidos
do Centrão em
busca de sobrevivência política. Moderou seu discurso belicoso e
confrontacional e tem se engajado diretamente na eleição dos presidentes das
duas casas legislativas.
Se
Bolsonaro almeja governabilidade e competitividade eleitoral em 2022, é
esperado que se comporte daqui para frente seguindo duas estratégias
aparentemente contraditórias. Por um lado, o governo precisa garantir, com
recompensas, que o Centrão continue a apoiá-lo. Daí ser esperada uma reforma
ministerial ampla que acomode esses interesses. Na medida em que essa
estratégia tende a enfraquecer o suporte político do seu “núcleo duro” de
eleitores, precisará se engajar na defesa de uma agenda de costumes
conservadora. Mesmo com o risco de vir a ser derrotada no Legislativo e no
Judiciário, essa agenda de costumes cumpre o papel de alimentar e manter o
engajamento das conexões identitárias com os que aprovam o seu governo.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)
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