Este
ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora
Joca,
meu amigo que mora nos altos do Rio, numa casa cercada por trecho preservado da
Mata Atlântica, me telefonou outro dia. Me preparei para aceitar mais um
convite para fim de semana no meio do mato, almoçando o que ele mesmo cozinha
(Joca é especialista em peixe). Mas havia na voz de meu amigo um certo pânico,
vi logo que não se tratava de nada divertido.
Com estardalhaço e a certeza de que estava sendo injustamente prejudicado, Joca desabafou, antes mesmo de um boa-noite regulamentar: ele havia assistido a um programa culto da televisão em que se dizia que o macaco-prego tinha o hábito de devorar o caule das palmas. E Joca sabia, por informação de um desses ecologistas palpiteiros que o frequentavam, que era justamente pelo caule que as palmas se multiplicavam. Como o que mais havia no mato em torno de sua casa eram macacos daquela família, tão numerosos quanto vorazes, Joca entrara em pânico. Se a notícia se confirmasse, a casa, passado algum tempo, poderia se tornar uma ilha de barro cercada de mato seco sem graça, por terrenos baldios sem verde algum.
Eu
ia lhe dizer que, mesmo que por absurdo viesse a perder para sempre as palmas
da vizinhança, lhe sobrariam folhas e flores, plantas e árvores, verdes
infindáveis no entorno da propriedade. Não lhe faltariam mato e bichos de toda
espécie para viver nele. Mas, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Joca
adivinhou a direção de meu discurso em construção e berrou que ia ler em voz
alta, no seu celular, cópia do que eu havia escrito há umas semanas na coluna,
depois de um almoço ao ar livre em sua casa.
Tratava-se
de um elogio generoso a aves e animais que da mata nos observavam a devorar a
peixada que nosso anfitrião nos havia preparado. Entre tucanos e estranhas
borboletas, maracanãs e maritacas, eu destacava os encantadores macaquinhos,
bravos e simpáticos, moradores da floresta. Alguns até traziam às costas
membros de sua prole que assim aprendiam o caminho das palmas, uma cena tornada
inesquecível por minha filha Flora, apaixonada pelo lugar. E, com malícia, Joca
se dirigia a mim como se eu fosse, em qualquer circunstância, um aliado
daqueles animais. Como quem já sabia que, por velha amizade e parceria, eu ia
defender os bichinhos gulosos e irresponsáveis, mesmo que estivessem acabando
com o planeta.
Fora
de si, Joca me anunciou que ia ler o final de meu artigo. Ele aumentou o volume
da voz e leu sem respirar, sem respeitar pontos e vírgulas: “Os bichos andam
sempre em grupos homogêneos sem a participação indesejável dos que são
diferentes. Foi o ser humano que inventou a solidariedade e somente nós a praticamos
sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma
constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento”. Joca suspirou e
completou a leitura: “Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos
inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?”.
Pensei
na utopia que a frase propunha, mas fiz silêncio e nem me ocorreu argumentar
que todo macaco era um ser irracional, sendo aquele um pensamento muito
sofisticado para um ser irracional. Joca também fez silêncio do outro lado, mas
ainda suspirava, parecendo extenuado por tão pouco. Depois de algum tempo sem
que nenhum dos dois dissesse qualquer coisa, ele mudou de tom e me convidou
para dar um pulo com Renata em sua casa para tomar um vinho. Fui. Quase que
como se a rápida conversa no telefone me impedisse de não ir.
A
caminho de sua casa, meu celular tocou e Renata atendeu. Era ele. Depois de
ouvi-lo, Renata, divertindo-se muito, ligou o viva-voz para que eu também
ouvisse o que ele dissera: “Diga a ele para não se esquecer de trazer o raio X,
que é pra gente ver o calo ósseo”. Eu ainda ria de seu inesperado humor negro,
quando Joca retomou o tom anterior da conversa. “Que sujeitinho, né não? Esse
cara não consegue dizer nada que seja construtivo, nada que nos ajude a viver”.
Imediata e peremptoriamente, Renata respondeu por mim e por ela: “É isso aí,
Joca. É isso mesmo”.
Não sei por quê, me vieram ao coração as dores de 2020, com a certeza de que este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora. Há meses que não vejo meus amigos em pessoa. Estou de saco cheio de lives e encontros virtuais, agradeço o esforço que a ciência contemporânea faz para que não percamos o sinal dos outros, mas quero vê-los ao vivo, a elogiar a vida mesmo que eventualmente infelizes. Quero sobretudo abraçá-los muito nessa entrada de 2021.
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