Foi assim com a política de Vargas, que nos trouxe ao moderno da industrialização em aliança com o atraso – basta lembrar sua recusa em levar a legislação trabalhista ao campo –, com a de JK, com a do regime militar de1964, especialmente no desenvolvimentismo do governo Médici, que confiou sua política à Arena, partido formatado com as elites do atraso. Chegamos à modernização por meio desse conúbio, classicamente uma modernização conservadora, que nos embaraçou em nosso movimento em direção ao moderno.
O ineditismo da hora presente reside, pois, nessa abstrusa situação em que o coadjuvante chega ao proscênio na ausência de um protagonista. Para que um ator exerça protagonismo em cena é indispensável que ele seja portador de um papel ativo na condução de um enredo em que ele centralize o sentido das ações, papel que o Centrão, por natureza um conjunto amorfo de políticos sem luz própria, não tem como exercer. Bolsonaro igualmente não cabe nesse perfil, presidente acidental que chega ao governo num lance de fortuna e que tem como único projeto a conservação do poder, desconfiado como os tiranos clássicos de tudo e de todos ao seu redor.
O cenário é de desconcertante miséria política numa sociedade carente de lideranças que lhe apontem um rumo em meio às suas dolorosas aflições pela ação de uma cruel pandemia, acossada pelo desemprego e com boa parte dela às portas da miséria absoluta. As respostas a essa situação de descalabro inaudito são desalentadoras, como a do prefeito de Salvador, ACM Neto, virtual candidato ao governo do seu estado, indicando seu alinhamento a Bolsonaro, como foi a do ex-presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, que por cálculos mesquinhos sentou-se em cima de dezenas petições em favor do impeachment presidencial. E chegam ao inacreditável com a recusa de Lula de compor uma ampla coalizão democrática na próxima sucessão presidencial em nome de uma candidatura do seu partido.
Não há governo e nem sequer uma oposição digna desse nome, assombrada diante da mula sem cabeça assentada em seu destino a sociedade clama por uma voz e ações que venham a seu socorro, que somente podem provir de suas entranhas, como estão vindo das comunidades populares e dos seus artistas e intelectuais, dos profissionais da saúde e das nossas maiores personalidades intelectuais, que fazem coro aos parlamentares que receberam no Congresso o presidente que aí está aos brados de facínora genocida.
Mais do que denunciar o caráter perverso do atual governo, por sua incúria em enfrentar a pandemia, os movimentos que se fazem presentes na luta contra ela têm importado em impulsos para a auto-organização da vida social, registrando-se inclusive petições de impeachment apresentadas por personalidades das atividades de saúde pública. Cabe ao campo democrático amplificar a ressonância dessas vozes traduzindo-as em um sonoro clamor público, chave acionada para nos livrar do horror a que estamos submetidos.
É verdade que temos um encontro marcado com o que aí está em 2022, se não conseguirmos antecipar essa data com um reparador impeachment. Para ele devemos nos preparar, em primeiro lugar com a apresentação de um projeto de soerguimento do país, de reanimação da sua vida econômica e cultural que devolva esperança aos brasileiros. Sobretudo com a articulação de uma frente política tão ampla quanto possível, e que encontre suporte na sociedade civil na forma que aprendemos a fazer nas lutas contra o regime militar.
As condições para tal empreendimento estão dadas e visíveis a olho nu, como no cenário internacional em que a potência dominante defenestrou o populismo reacionário de Trump, e entroniza como eixo estratégico da sua política os temas ao meio ambiente e dos direitos humanos, calcanhares de Aquiles do atual governo que logo sentirá os efeitos perturbadores dessa nova orientação. Internamente, o experimento exótico de um governo dominado pelo Centrão com a consistência das gelatinas, em que pesem as cabriolas hermenêuticas que rolam por aí, promete ser minado pela fúria dos apetites desencontrados dos seus quadros numa feroz competição que ignora quem a arbitre, tal como se testemunha no interior do DEM, satélite enrustido do Centrão.
A composição dessa frente implica em engenho e arte por parte das forças democráticas, particularmente da esquerda, artífice de importância crucial de sua elaboração, cabendo a ela tecer os fios de comunicação entre as forças convergentes no propósito maior de servir a afirmação dos seus valores e princípios. Não chegou ainda a hora da fulanização, para se usar uma expressão de Fernando Henrique, ela virá do processo de construção da frente democrática conforme sustenta Guilherme Boulos em sua resposta a uma precoce proposta de candidatura por parte do PT.
É preciso reconhecer que os recentes resultados negativos nas eleições congressuais adensaram a neblina dos mares que singramos, mas contamos com os bons conselhos do poeta que nos recomenda que, em meio ao nevoeiro, levemos o barco devagar. Devagar, mas em frente, sugerem as suas palavras. A tempestade já passou, ficaram para trás os delírios de um novo AI-5, e é preciso tirar proveito da aragem amável que nos bafeja, seguir viagem ao lugar pretendido. Se formos firmes e prudentes, ele está logo ali, ao alcance da mão.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
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