- O Estado de S. Paulo
Não é possível escapar da necessidade de
moedas de troca no presidencialismo multipartidário
O presidencialismo multipartidário requer, como
condição sine qua non, o uso discricionário de moedas de troca pelo presidente.
Essa não é uma opção moral do governante. É uma necessidade para que o jogo
político alcance funcionalidade em um ambiente em que o partido do presidente
não desfruta de maioria legislativa. Governos e sociedades que negam esse
imperativo pagam custos mais altos de governabilidade.
Regimes parlamentaristas costumam
ter partidos fortes, ideológicos e programáticos, capazes de ofertar suporte
legislativo estável a um governo em troca da alocação de ministérios e outros
espaços de poder a parceiros que façam parte da coalizão de governo.
Já presidencialismos multipartidários, como o brasileiro, não possuem partidos políticos programáticos. Aqui os partidos são ideologicamente amorfos. Os acordos na construção de maiorias legislativas não se dão em torno de princípios, ideologias ou agendas de políticas universais. Se dão em troca de acesso a poderes e recursos orçamentários necessários à implementação de políticas locais com a digital do parlamentar, que são cruciais para a sua sobrevivência eleitoral em um ambiente altamente competitivo.
Esse jogo causa pruridos morais a muitas
pessoas no Brasil. Elas querem um sistema político que não possuem. Elas
idealizam um sistema político asséptico que não existe. Sempre se lamentam,
como se a grama do vizinho fosse mais verde que a sua.
Gerou perplexidade a informação de que o
governo Bolsonaro estava fazendo uso de um suposto “orçamento secreto”, travestido da
rubrica de “emendas
de relator” (Rp 9), em troca de apoio no Congresso. Ao
contrário das outras emendas (individuais, de bancada e de comissão), que
teriam regras específicas quanto ao número, valores, destino e teria a sua
execução obrigatória, as emendas de relator seriam distribuídas de forma
sigilosa, conforme a conveniência política do governo e seu destino seria
informalmente indicado pelo parlamentar.
A alocação de recurso proveniente de
emendas sempre foi distribuída de forma desigual entre
parlamentares. Existe ampla evidência na ciência política brasileira que mostra
que o parlamentar que se comporta de forma congruente aos interesses do
Executivo apresenta maiores chances de ver suas emendas executadas. Desta
forma, não existe inovação do governo Bolsonaro em premiar desproporcionalmente
aliados. O grande problema dessas emendas Rp 9 é que sua alocação e execução
estão fora do alcance da sociedade e de órgãos de controle como o MP, TCU e
CGU, dando margem a comportamentos desviantes, como o esquema de compra de tratores supostamente superfaturados,
conhecido como “tratoraço
da Codevasf”.
Mesmo que o presidencialismo
multipartidário não possa prescindir de moedas de troca, isso não significa que
elas tenham que ser ilegais ou dar margem a ilegalidades.
A execução impositiva das emendas
individuais e coletivas, surgida a partir de erros sucessivos na gerência de
coalizões, especialmente nos governos Dilma e Bolsonaro, fez com que o Executivo
perdesse liquidez nas trocas políticas. Ficou restrito fundamentalmente a
moedas menos flexíveis, como ministérios e cargos na burocracia. Era esperado,
portanto, que o mercado político, cedo ou tarde, encontrasse novas moedas que
destravassem as relações entre Executivo e Legislativo.
O jogo de Bolsonaro com o Legislativo fica
ainda mais difícil porque, além de ter demorado para montar uma coalizão
minoritária, o fez em condições de fragilidade. Ele perdeu o que tinha
(discricionariedade na execução das emendas) e não quer gastar o que ainda tem,
já que tem preferido alocar ministérios a quem não faz parte da coalizão ou
quem não tem assento e nem voto no Congresso, como os amigos militares.
*Cientista Político e Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE), Rio de Janeiro
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