"Tudo bandido!", decretou Hamilton Mourão
horas depois do massacre no Jacarezinho, em 6 de maio, quando indagado sobre 27
das 28 vítimas fatais. O vice-presidente só conhecia a identidade do policial
morto. Os supostos criminosos não tinham sido processados, julgados ou
condenados. A segunda maior autoridade do país oferecia seu amparo a execuções
extrajudiciais.
Mais:
classificando como “bandidos” as vítimas ainda não identificadas, dizia
implicitamente que são criminosos os que residem ou simplesmente circulam pelo
Jacarezinho. A frase, síntese da barbárie nacional, esclarece os protocolos
ocultos de ação da polícia no Rio de Janeiro. Desde o fracasso da política das
UPPs, restaurou-se o padrão de invasão de favelas em operações letais. O pressuposto
é que as favelas são terra estrangeira e seus moradores, combatentes inimigos.
Exige-se a investigação da Operação Exceptis, cujo nome de batismo enviava uma mensagem voluntária de deboche ao STF e uma outra, involuntária, a todo o país: a polícia do Rio não reconhece as leis regulares, mas apenas suas próprias leis, de “exceção”. O que procurar, porém, na investigação?
A
resposta depende da hipótese inicial. Se acreditamos que a polícia do Rio é um
corpo armado que opera sem planejamento e sem protocolos, a investigação
deveria restringir-se aos desvios em relação aos padrões normais de ação
policial e terminar com a punição dos agentes culpados. Mas tudo indica que a
polícia segue planejamento e protocolos bem definidos, embora ocultos.
Na
cidade do Rio, quase 60% da superfície dos territórios controlados por grupos
armados irregulares encontram-se sob o comando de milícias, ou seja, da polícia
do B. Apenas 15% são controlados por facções do crime, enquanto 25% são áreas
de parceria ou disputa. Contudo a imensa maioria das operações policiais incide
sobre os territórios de facções. É coisa incomum a ação da polícia oficial nos
territórios de milícias — e mais raros ainda, os eventos de choques entre
policiais e milicianos. Não estaríamos diante de uma aliança tácita entre a
polícia e as milícias para estender o controle territorial das segundas?
O
Jacarezinho situa-se nas vizinhanças da Cidade da Polícia, base principal das
chefias e unidades operacionais da Polícia Civil. A favela vive sob a maior
facção criminosa do Rio, um grupo sanguinário que nunca faz parceria com as
milícias. A facção concorrente, pelo contrário, não rejeita parcerias baseadas
numa nítida divisão de trabalho: os traficantes cuidam da venda de drogas,
enquanto os milicianos dedicam-se à extorsão de comerciantes e moradores. A
seleção do Jacarezinho para a Operação Exceptis parece obedecer a uma lógica de
negócios. Quem ganha com uma eventual troca de guarda na favela?
A
estúpida “guerra às drogas” é o pano de fundo e o álibi, mas não a causa, do
massacre mais recente. Polícia é política. Uma investigação verdadeira do banho
de sangue teria que ir muito além da operação no Jacarezinho, em busca das
conexões subterrâneas entre a polícia oficial e a polícia do B.
O
prefeito Eduardo Paes oscilou entre a condenação à violência da polícia e a
crítica às restrições impostas pelo STF às ações policiais. “Se a reação for
tão radical quanto a operação de ontem, um ‘ah, então libera geral esse
território aqui para fazerem o que quiserem’, nós vamos viver esse pêndulo
terrível que vitimiza principalmente as pessoas que moram em comunidades.” O
“pêndulo terrível”, porém, instalou-se há décadas, e o “libera geral” exprime a
postura estatal diante das milícias.
Paes identifica corretamente “as pessoas que moram em comunidades” como as vítimas da crônica guerra suja no Rio. Contudo finge que a solução encontra-se em olhar para outro lado, isto é, voltar à estranha “normalidade” vigente na segunda maior metrópole do país. Se ele se preocupa com as vítimas, deve clamar por uma “reação radical”: a implantação do Estado de Direito no conjunto da cidade que administra. Para isso, antes de tudo, é preciso reconhecer que a polícia oficial já não se distingue da polícia do B.
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