- Folha de S. Paulo
A
conversão de Bolsonaro em mais um membro da velha política reduz seu apelo
junto ao bolsonarismo raiz, mas o impacto sobre 2022 é baixo
A
trajetória de Bolsonaro é marcada por uma singularidade notável: nenhum
dos governantes
populistas com os quais é comparado —Trump, Orban, Obrador, Modi,
entre outros— sofreu metamorfoses tão profundas no padrão de governança ao
longo do seu mandato. Sua ascensão ao poder está associada fundamentalmente a
sua rejeição à velha política. A mesma, no entanto, que ele veio a abraçar em
guinada inédita, antes de alcançar a metade do mandato. Quais as consequências
desta reconversão?
Sim, embora já fosse veterano de sete mandatos, pelo papel inteiramente marginal que ocupou na política congressual nacional Bolsonaro podia apresentar-se ao eleitorado nacional como um outsider. Ele é representante típico do “dégagisme”, a rejeição à velha política —como no “que se vayan todos”— da forma que analisa Pierre Rosanvallon em seu novo livro (ainda inédito em português).
O
historiador argumenta que “coalizões negativas fazem chegar ao poder
personalidades improváveis das quais a virgindade política e aparição do nada
são as principais qualidades”. É certo que a “virgindade política” caberia como
qualificação de Bolsonaro apenas com as qualificações anteriores. Mas o que
importa aqui é que o estilo presidencial foi marcado pelo maximalismo e
pelo repúdio
à barganha política. O ponto é que sua ascensão de fato assenta-se em uma
coalizão negativa.
A
rejeição da política tradicional é comum a todos os atores que ocupam posição
marginal no sistema político ou estão fora dele. O dégagisme é marcado pela
ausência de referências a competência ou a desempenho, centrando-se na política
da autenticidade. Aqui até a ignorância é valorizada como sinal de ausência de
máculas oriundas de vícios burocráticos ou partidários.
O
ideal de representação política é o da chamada representação descritiva: o
representante será tanto melhor quanto mais se pareça com os representados,
inclusive no que se refere a ausência de conhecimento e preconceitos. Nesta
tradição iliberal, valoriza-se uma certa naiveté e brutalidade porque
autêntica.
Mas,
ao fim e ao cabo, a virgem foi ao bordel. A metamorfose ocorrida tem custos junto
ao eleitorado, mas eles podem ser menores do que poderíamos pensar. A conversão
de Bolsonaro em um político como outro qualquer reduz seu apelo junto ao
bolsonarismo raiz, mas o impacto líquido sobre o voto é baixo. Torna também o
alerta que representa uma ameaça golpista menos crível junto ao eleitorado
volátil.
A
política da autenticidade perde importância e potencialmente o foco é posto no
(pífio) desempenho presidencial. No entanto a arquitetura da escolha é que será
determinante: trata-se de uma escolha entre duas opções.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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