terça-feira, 29 de junho de 2021

Carlos Andreazza - Mutualismo

O Globo

Tape o nariz e atenção ao que importa no Covaxingate. A fedentina emana do privilégio a empresas atravessadoras e extrapola os limites da acusação feita pelos irmãos Miranda, restrita a um só contrato. Não foi ocorrência única. Porque não foi só um o atravessador a pactuar com o governo. Este advento — o sorriso do intermediário — é o que distingue o olhar simpático e expedito do governo Bolsonaro para algumas vacinas em detrimento de outras, como as de Pfizer e Janssen, desde há muito presentes no Brasil com representação direta, e como a CoronaVac, mediada pelo Butantan.

Este advento — o sorriso do intermediário —é o que distingue o olhar apaixonado do governo para algumas vacinas; para alguns contratos. Mire-se no rastro dos atravessadores — e se chegará aos que lhes terão cantado as bolas. Não será somente um o padrinho; e não haverá padrinhos (ou anjos) capazes de entregar sem um exército de operadores com os pés no chão e as mãos na máquina.

Fato: o Ministério da Saúde foi célere em contratar imunizantes de laboratórios que tivessem intermediários no Brasil. Para ser exato: foi empenhado em contratar imunizantes de laboratórios sem representação tradicional no país, mas de súbito procurados por intermediários dispostos a representá-los. Intermediários com ótimo trânsito em Brasília, especialmente — pode ser coincidência — com o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. Especialmente; mas não somente com ele.

Temos um padrão. Padrão bem brasileiro, e de que parece não escapar o governo do presidente que acabaria com a mamata, mas que agora já opera na frequência “não tenho como saber o que acontece nos ministérios”. O padrão: a presença do atravessador influente — não raro com desfalques, ainda frescos, aplicados no lombo do Estado — como agente acelerador de processos. Presença que explica por que o Ministério da Saúde se conveniou tão expressamente para obter os duvidosos imunizantes Covaxin e Sputnik V e por que assinou carta de intenções pela compra da vacina Convidecia. (Registre-se que, informado sobre as irregularidades de seu intermediário no Brasil, a farmacêutica chinesa CanSino, produtora da Convidecia, revogou a representação.)

Elemento comum aos três casos — repise-se: a existência do intermediário. Três intermediários — cada um a sua maneira, todos, curiosamente (pode ser coincidência), próximos a Barros, um ex-ministro da Saúde recente. A Precisa (Covaxin), a Belcher (Convidecia) e a União Química (Sputnik V) — esta última, a do mais espantoso lobby parlamentar e em defesa de cujos interesses setores do Congresso (para muito além de Barros) ensaiaram mesmo suprimir atribuições da Anvisa. (Seu lobista esteve ao menos cinco vezes com o secretário-geral — e braço — de Eduardo Pazuello, o coronel Elcio Franco.) A Belcher, alvo — em junho de 2020 — da Operação Falso Negativo, mobilizada contra companhias suspeitas de superfaturar testes de Covid-19. E a Precisa, que tem como sócio o dono da Global, empresa que deu calote de R$ 20 milhões no Ministério da Saúde quando comandado por Ricardo Barros.

Barros, o líder do governo que acabaria com a mamata. Que, como líder do governo — que acabaria com a mamata, mas que precisa de Barros para existir —, permanece. Barros, o responsável pela emenda que incluiu a agência sanitária indiana (e somente essa) entre as autoridades internacionais que avalizariam o uso emergencial de vacinas no Brasil (emenda que beneficiaria a utilização da Covaxin); emenda a uma medida provisória, a 1.026, de que o governo deliberadamente tirara o dispositivo que tratava de responsabilidade civil e que destravaria a negociação com a Pfizer — aquela sem atravessador. Barros, o líder do governo do presidente que escreveu (advocacia administrativa?) ao primeiro-ministro indiano informando que a Covaxin — ainda sem contrato e sem autorização da Anvisa — integraria o Programa Nacional de Imunizações brasileiro; isso enquanto os representantes da intermediária Precisa estavam na Índia para negociar com a Bharat Biotech.

Barros: a quem — na conversa de 20 de março, segundo o deputado Luis Miranda — Bolsonaro teria atribuído a responsabilidade sobre o “rolo” denunciado. Barros, em proteção a quem — para garantir o próprio governo, que não dura sem o que Barros representa — o presidente teria prevaricado; ou terceirizado a prevaricação, conforme a versão que Onyx Lorenzoni ditou a senadores governistas da CPI: em vez de procurar a Polícia Federal para que apurasse o que lhe fora relatado, Bolsonaro preferira, claro, falar ao ministro da Saúde sobre suspeitas no ministério, suspeitas que lambiam ao menos dois militares da cota-confiança de Pazuello; que, por seu turno, voltaria ao presidente para tranquilizá-lo sobre o contrato intermediado pela Precisa, à margem de que se tentava fazer passar — com a chancela de sua fiscal e sob pressão de agentes da atravessadora — um pagamento antecipado a uma offshore não constante do acordo e que é controlada, nota cômica, por empresa indiana especializada em vacina de gado.

Barros fica. Para que Bolsonaro possa ficar. Mais fácil mesmo, pelo menos por ora, que o preço do Centrão suba, e a sociedade se fortaleça. Mais intermediários virão. O gado justificará — pela causa! —, e o governo seguirá sem casos de corrupção. Desnecessário dizer que Barros é poderosíssimo, mas não é presidente nem ministro da Saúde.

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