O Globo
Tape o nariz e atenção ao que importa
no Covaxingate. A
fedentina emana do privilégio a empresas atravessadoras e extrapola os limites
da acusação feita pelos irmãos Miranda, restrita a um só contrato. Não foi
ocorrência única. Porque não foi só um o atravessador a pactuar com o governo.
Este advento — o sorriso do intermediário — é o que distingue o olhar simpático
e expedito do governo Bolsonaro para algumas vacinas em detrimento de outras,
como as de Pfizer e Janssen, desde há muito presentes no Brasil com
representação direta, e como a CoronaVac, mediada pelo Butantan.
Este advento — o sorriso do intermediário
—é o que distingue o olhar apaixonado do governo para algumas vacinas; para
alguns contratos. Mire-se no rastro dos atravessadores — e se chegará aos que
lhes terão cantado as bolas. Não será somente um o padrinho; e não haverá
padrinhos (ou anjos) capazes de entregar sem um exército de operadores com os
pés no chão e as mãos na máquina.
Fato: o Ministério da Saúde foi célere em
contratar imunizantes de laboratórios que tivessem intermediários no Brasil.
Para ser exato: foi empenhado em contratar imunizantes de laboratórios sem
representação tradicional no país, mas de súbito procurados por intermediários
dispostos a representá-los. Intermediários com ótimo trânsito em Brasília,
especialmente — pode ser coincidência — com o líder do governo na Câmara,
Ricardo Barros. Especialmente; mas não somente com ele.
Temos um padrão. Padrão bem brasileiro, e de que parece não escapar o governo do presidente que acabaria com a mamata, mas que agora já opera na frequência “não tenho como saber o que acontece nos ministérios”. O padrão: a presença do atravessador influente — não raro com desfalques, ainda frescos, aplicados no lombo do Estado — como agente acelerador de processos. Presença que explica por que o Ministério da Saúde se conveniou tão expressamente para obter os duvidosos imunizantes Covaxin e Sputnik V e por que assinou carta de intenções pela compra da vacina Convidecia. (Registre-se que, informado sobre as irregularidades de seu intermediário no Brasil, a farmacêutica chinesa CanSino, produtora da Convidecia, revogou a representação.)
Elemento comum aos três casos — repise-se:
a existência do intermediário. Três intermediários — cada um a sua maneira,
todos, curiosamente (pode ser coincidência), próximos a Barros, um ex-ministro
da Saúde recente. A Precisa (Covaxin), a Belcher (Convidecia) e a União Química
(Sputnik V) — esta última, a do mais espantoso lobby parlamentar e em defesa de
cujos interesses setores do Congresso (para muito além de Barros) ensaiaram
mesmo suprimir atribuições da Anvisa. (Seu lobista esteve ao menos cinco vezes
com o secretário-geral — e braço — de Eduardo Pazuello, o coronel Elcio
Franco.) A Belcher, alvo — em junho de 2020 — da Operação Falso Negativo,
mobilizada contra companhias suspeitas de superfaturar testes de Covid-19. E a
Precisa, que tem como sócio o dono da Global, empresa que deu calote de R$ 20
milhões no Ministério da Saúde quando comandado por Ricardo Barros.
Barros, o líder do governo que acabaria com
a mamata. Que, como líder do governo — que acabaria com a mamata, mas que
precisa de Barros para existir —, permanece. Barros, o responsável pela emenda
que incluiu a agência sanitária indiana (e somente essa) entre as autoridades
internacionais que avalizariam o uso emergencial de vacinas no Brasil (emenda
que beneficiaria a utilização da Covaxin); emenda a uma medida provisória, a
1.026, de que o governo deliberadamente tirara o dispositivo que tratava de
responsabilidade civil e que destravaria a negociação com a Pfizer — aquela sem
atravessador. Barros, o líder do governo do presidente que escreveu (advocacia
administrativa?) ao primeiro-ministro indiano informando que a Covaxin — ainda
sem contrato e sem autorização da Anvisa — integraria o Programa Nacional de Imunizações
brasileiro; isso enquanto os representantes da intermediária Precisa estavam na
Índia para negociar com a Bharat Biotech.
Barros: a quem — na conversa de 20 de
março, segundo o deputado Luis Miranda — Bolsonaro teria atribuído a
responsabilidade sobre o “rolo” denunciado. Barros, em proteção a quem — para
garantir o próprio governo, que não dura sem o que Barros representa — o
presidente teria prevaricado; ou terceirizado a prevaricação, conforme a versão
que Onyx Lorenzoni ditou a senadores governistas da CPI: em vez de procurar a
Polícia Federal para que apurasse o que lhe fora relatado, Bolsonaro preferira,
claro, falar ao ministro da Saúde sobre suspeitas no ministério, suspeitas que
lambiam ao menos dois militares da cota-confiança de Pazuello; que, por seu
turno, voltaria ao presidente para tranquilizá-lo sobre o contrato intermediado
pela Precisa, à margem de que se tentava fazer passar — com a chancela de sua
fiscal e sob pressão de agentes da atravessadora — um pagamento antecipado a
uma offshore não constante do acordo e que é controlada, nota cômica, por
empresa indiana especializada em vacina de gado.
Barros fica. Para que Bolsonaro possa ficar. Mais fácil mesmo, pelo menos por ora, que o preço do Centrão suba, e a sociedade se fortaleça. Mais intermediários virão. O gado justificará — pela causa! —, e o governo seguirá sem casos de corrupção. Desnecessário dizer que Barros é poderosíssimo, mas não é presidente nem ministro da Saúde.
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