Folha de S. Paulo
Não há nada na direita que a esquerda não
seja capaz de superar, e vice-versa
A acusação indignada de que um presidente é
genocida perde muita força se você, ao mesmo tempo, celebra genocidas notórios.
É o que fez a deputada
Jandira Feghali, celebrando uma possível (e incerta) queda de Bolsonaro com
uma menção
laudatória e espirituosa a Stálin. De quem, bem sabemos, o PC do B nunca se
libertou.
O
stalinismo não é um risco muito presente no Brasil. Sobrevive, é verdade, na
forma de fósseis partidários e, surpreendentemente, é um nicho crescente dos
influenciadores políticos nas redes; mais um sintoma da polarização e
radicalismo bizarros a que estamos sujeitos. Ainda assim, esses delírios
comunistas não estão próximos de ditar os rumos do país.
O risco não é que se ressuscite Stálin e o sonho de uma República Soviética Brasileira. E sim que velhas roupagens indiquem ímpetos autoritários renovados. A ruptura democrática, o autoritarismo com desígnios de poder total, se voltar, não será com as mesmas cores e bandeiras do passado. Será com métodos e bandeiras adequados ao nosso tempo, como ocorre em toda tirania.
A democracia —a real democracia, que
protege direitos minoritários, e não apenas a vontade da maioria— contraria
nosso impulso. Protegê-la não é espontâneo, porque exige refrear aquilo que em
nós parece mais admirável: a ânsia de fazer valer a justiça custe o que custar
(que, bem sabemos, nem sempre é tão admirável assim e mascara desejos de
vingança e de poder).
É como o método científico para o
conhecimento: para se chegar a um entendimento minimamente objetivo da
realidade, é preciso refrear a tendência do seu próprio intelecto, que se guia
pela experiência ou intuição pessoais. É preciso questionar uma teoria;
testá-la, se possível falseá-la, para que possamos, provisoriamente,
considerá-la verdadeira. Duvidar de si mesmo é mais útil ao conhecimento do que
cultivar a própria certeza. O método está acima de qualquer teoria.
Similarmente, a democracia liberal —único
regime que protege liberdades individuais e dá a todos a chance de participar
do poder e dos recursos, ainda que imperfeitamente— depende de que uma
quantidade mínima de pessoas coloque o respeito às regras do jogo político e
institucional acima dos seus desejos partidários e ideológicos.
Para que isso ocorra, é preciso que exista
alguma fé na integridade do sistema. Se o Brasil é, sob as aparências, uma
tirania comunista, e Bolsonaro é nossa única esperança, então tudo vale para
garantir-lhe o poder. Se, pelo contrário, a “democracia burguesa” nada mais é
do que a defesa dos ricos e em essência igual ao fascismo —só mais limpinha—
então também de nada vale respeitá-la. Não existe lado do espectro imune à tentação
autoritária: Stálin,
Hitler, Pinochet, Fidel, nossa ditadura. Cada ideologia —socialistas,
conservadores, liberais econômicos— encontrará um ditador sanguinário.
Bolsonaro corrói as regras do jogo. O que
antes era comportamento impensável de tão baixo (como xingar jornalista de
prostituta ou duvidar das eleições sem prova alguma) torna-se conduta normal,
até esperada. A fé básica, a confiança mútua mais elementar, vai sendo minada.
A pior lição a se tirar dos anos Bolsonaro é a de que a direita é nefasta e que um governo de esquerda, portanto, está livre do risco de autoritarismo e destruição. Sim, o governo Bolsonaro é de direita e é nefasto, mas isso não salva governos de esquerda de também sê-lo. Maduro —mais repressivo e violento do que Bolsonaro em qualquer medida— está aí para provar. Não há nada na direita que a esquerda não seja capaz de superar, e vice-versa.
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