O Globo
Foi o general Augusto Heleno quem aplicou
ao Centrão a trilha sonora celebrizada pelo Exporta Samba na convenção que
escolheu Jair Bolsonaro candidato a presidente da República pelo PSL. “Se
gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, cantou o general, todo
animadinho, ao microfone. A plateia veio abaixo. Eu estava lá para fazer
uma reportagem e vi, mas não seria preciso ter testemunhado para citar a cena
de memória. Está no YouTube para quem quiser conferir.
É uma lembrança do tempo em que os
bolsonaristas se sentiam no direito de gritar “eu vim de graça” num centro de
convenções lotado, promovendo a arauto da verdade e da ética um grupo de
militares que louvava a ditadura e hostilizava a imprensa, as minorias e os adversários.
No meio do povo, muitos dos que entrevistei
se diziam arrependidos de ter votado em Lula e Dilma, sentindo-se traídos pelos
escândalos de corrupção dos governos petistas. Achavam, então, que votando em
Bolsonaro acertariam a mão.
Esses arrependidos estavam entre os que
mais aplaudiam Heleno quando ele disse: “O Centrão é a materialização da
impunidade. O primeiro ato do presidente que for eleito carimbado de Centrão
vai ser uma anistia ampla, geral e irrestrita”.
E eis que chegamos a 2021 no seguinte cenário: o maior líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), é presidente da Câmara dos Deputados com o apoio empenhado de Bolsonaro, que liberou bilhões em emendas parlamentares para elegê-lo. Há poucos dias, Lira comandou na Câmara a votação de mudanças que restringem o alcance da Lei de Improbidade Administrativa ao ponto de ela ter sido apelidada de “lei da impunidade”.
Outro chefe desse conglomerado
político-fisiológico, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) — que já apoiou
Fernando Henrique, Lula, Dilma Rousseff, foi ministro de Michel Temer e agora é
líder de Jair Bolsonaro — está enredado até o último fio de cabelo nas
denúncias de cobrança e oferta de propina nas negociações para compra de vacina
pelo governo.
Jair Bolsonaro foi avisado há três meses da
pressão mais do que suspeita que os apadrinhados de Barros e os coronéis do
Ministério da Saúde faziam sobre o servidor público Luis Ricardo Miranda. Quem
estourou tudo não foi nenhum oposicionista, e sim o bolsonarista inveterado,
irmão do servidor e também deputado Luis Miranda (DEM-DF).
E o presidente que combateria a corrupção?
Mandou apurar o caso? Chamou Ricardo Barros à fala? Demitiu seus apadrinhados?
Nada disso. Mesmo deixando claro que sabia que aquilo tudo era “rolo” de seu
líder na Câmara, Bolsonaro o presenteou com um mimo: a nomeação da mulher, Cida
Borghetti, para um cargo no conselho de Itaipu.
Mas não acabou aí. Nesta semana, vieram à
tona novas denúncias. Nelas, fica ainda mais claro que o grupo de Barros na
Saúde não era composto apenas de seus apadrinhados, como o diretor de logística
Roberto Dias, mas também de vários militares, fardados e ex-fardados, como
Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro.
Segundo um intermediário que ofereceu ao
governo 400 milhões de doses de AstraZeneca contou à repórter Constança
Rezende, da Folha de S.Paulo, no mesmo encontro em que Dias cobrou propina de
US$ 1 por vacina estava um tenente-coronel chamado Marcelo Blanco, anotando
números e fazendo contas.
Os Mirandas já haviam comprometido em seus
relatos outro tenente-coronel, Alex Lial Marinho, também nomeado por Pazuello
para o ministério. Elcio Franco, ex-secretário executivo, se apressou a negar
que houvesse qualquer irregularidade e a jogar a sujeira para debaixo do
tapete.
Quanto mais a CPI avança, mais fica claro
que o Centrão formou um consórcio com os militares na Saúde, agindo como se não
houvesse amanhã enquanto milhares de pessoas sucumbiam à Covid-19 em hospitais
Brasil afora.
O general Heleno é hoje ministro no Palácio
do Planalto. O que será que pensa disso tudo? No fim de maio, ele desdisse na
Câmara dos Deputados tudo o que falara lá atrás sobre o Centrão: “Naquela época
era uma situação. A evolução de opinião faz parte da vida do ser humano. Isso
aí faz parte do show, do show político”.
No show político de Jair Bolsonaro, é
normal aceitar cheque de acusado de rachadinha, acobertar ministro investigado
por autorizar exportação de madeira ilegal, fechar os olhos para denúncias de
corrupção em compra de vacinas, preocupar-se mais em perseguir quem aponta o
malfeito do que quem o pratica.
No show político do governo Bolsonaro, a
morte de quase 520 mil brasileiros é mero efeito colateral. No show político de
Jair Bolsonaro, nenhuma trilha sonora cai tão bem quanto a do general Heleno de
2018.
Não fica um, meu irmão.
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