quinta-feira, 1 de julho de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Corrupção na área da Saúde revive no governo Bolsonaro

O Globo

Não é de hoje que a Saúde sangra em esquemas insidiosos de corrupção que se aproveitam dos grandes volumes de recursos e da urgência nas decisões. Nas últimas décadas, não poucos escândalos desmascararam o avanço inominável de quadrilhas sobre recursos públicos. Em 2004, vieram à tona as ações nefastas da “máfia dos vampiros”, que fraudou licitações para compra de remédios e hemoderivados. Em 2006, a Operação Sanguessuga, da PF, desarticulou um bando que desviava dinheiro da compra de ambulâncias. Nos anos recentes, a Lava-Jato revelou a roubalheira desenfreada na Saúde do Rio.

Eleito em 2018, o presidente Jair Bolsonaro empunhou como uma de suas principais bandeiras o combate à corrupção. Continua batendo na mesma tecla, ainda que, agora, o governo esteja no centro de graves denúncias que precisam ser investigadas. Na terça-feira, Bolsonaro repetiu a cantilena em vídeo postado numa rede social: “Querem o quê? A volta de quê? Daquela cambada que tinha no passado? É o que eu digo sempre. Analisem nossos ministros com os que os antecederam”. Ontem, partiu para o ataque: “Não vai ser com mentiras ou com CPI integrada por sete bandidos que vão nos tirar daqui”. E nada de respostas.

Não se trata de competição para medir quem é mais corrupto. De qualquer governo, espera-se tolerância zero com corrupção. Quando surge uma denúncia, o mínimo a fazer é mandar afastar os envolvidos e apurá-la. Nisso, o governo Bolsonaro continua devendo.

Não são denúncias banais. O servidor Luis Ricardo Miranda e seu irmão, o deputado Luis Claudio Miranda, afirmam ter alertado o presidente em março sobre pressões para apressar a importação da vacina indiana Covaxin. Segundo eles, Bolsonaro citou o nome do deputado Ricardo Barros (PP-PR) como responsável pelo “rolo” e prometeu levar as denúncias à PF, que só agora entrou no caso. Até o momento, Barros continua líder do governo na Câmara, como se nada tivesse ocorrido.

A situação se complicou quando, na terça-feira, Luiz Paulo Dominguetti, que disse representar a Davati, afirmou à Folha de S.Paulo que Roberto Ferreira Dias, diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, pediu propina de US$ 1 por dose numa negociação para comprar 400 milhões de doses da AstraZeneca (que afirmou não ser representada pela Davati). As tratativas não foram à frente, e o servidor foi exonerado sem maiores explicações. Nada disso apaga as transações nebulosas no ministério que Barros já comandou e onde manteve influência.

Desde o episódio das rachadinhas, que puseram em evidência o senador Flávio Bolsonaro e o amigo de todas as horas Fabrício Queiroz, a suspeita de propinas nas vacinas é o escândalo mais grave a atingir o governo. Não pode ficar sem resposta, ou com respostas capengas, como tem acontecido.

O casamento de conveniência de Bolsonaro com o Centrão, contra tudo o que o presidente pregava em sua cruzada antipolítica, cobra uma fatura a cada dia mais alta. Expoente do bloco, Barros está no âmago de um escândalo que contamina de forma indelével todo o governo. E este apenas mantém a apatia, tão reveladora quanto o silêncio do empresário Carlos Wizard em seu depoimento na CPI da Covid. Não se sabe como tudo repercutirá no eleitorado, mas é indubitável que o bolsonarismo, habituado a torpedear a corrupção dos petistas, está desorientado.

Queda na expectativa de vida no Brasil não será revertida tão cedo

O Globo

É sabido que catástrofes como guerras ou pandemias reduzem a expectativa de vida. Não surpreende, portanto, que a Covid-19 tenha feito cessar no Brasil a trajetória ininterrupta por quase oito décadas de melhora no indicador. Do fim da Segunda Guerra até 2019, o brasileiro ganhou em média cinco meses de vida a cada ano — de 45,5 anos, a expectativa ao nascer subiu para 76,7. Um estudo da Universidade Harvard publicado nesta semana confirma o esperado: pela primeira vez em 75 anos, quem nasce no Brasil espera viver menos — e quem tem mais de 65 anos, relativamente, menos ainda.

A expectativa de vida caiu 1,3 ano para quem nasceu em 2020, voltando ao nível de 2014. Para quem tinha 65 anos, caiu dez meses, retrocedendo ao patamar de 2012. Na Região Norte, o impacto foi tão catastrófico que representou retrocesso de duas décadas. As maiores quedas foram: Amazonas (3,5 anos), Amapá (3,2 anos) e Pará (2,7 anos). Só no Amazonas, a expectativa caiu 20% para homens de 65 anos.

Isso antes da catástrofe de 2021. Numa projeção preliminar que leva em conta os meses de janeiro a abril, os cientistas estimaram uma redução adicional de 1,8 ano na expectativa de vida para quem nascer neste ano. Embora avisem que a metodologia não permite comparar os dois resultados, é possível inferir que a pandemia representará um recuo ao nível de 2010.

Não há paralelo histórico para isso. Outros países, mesmo os atingidos de modo dramático, obtiveram recuo menor. Nos Estados Unidos, a expectativa caiu 1,1 ano em 2020. Nos países da União Europeia para os quais há dados preliminares, 0,9 ano. Será preciso aguardar a avaliação da tragédia em lugares como Índia ou Peru para encontrar catástrofe comparável à brasileira.

No caso mais semelhante do passado recente, a pandemia de gripe de 1918-19, uma vez vencido o choque sanitário, houve recuperação. Em 1918, a expectativa ao nascer caiu 6,8 anos para americanos, 8,3 para franceses e 12,2 para espanhóis. Em 1919, nos Estados Unidos já superava a de 1917.

Desta vez, aqui no Brasil será diferente. “A recuperação não acontecerá em 2021”, escrevem os cientistas. Eles elencam cinco motivos para isso: 1) a mortalidade da pandemia neste ano, até maio, foi 137% maior que em todo o ano passado; 2) o choque dramático nos serviços de saúde, com queda de 35% nos diagnósticos de câncer, abalo na vacinação infantil, interrupção nos tratamentos de tuberculose, aids e outras doenças; 3) as sequelas de longo prazo da Covid-19; 4) a exacerbação da desigualdade; 5) a redução no orçamento do Ministério da Saúde e mudanças no financiamento da medicina.

A conclusão não deixa dúvida sobre as responsabilidades. “A falta de uma resposta coordenada, rápida e equitativa, informada pela ciência, assim como a promoção da desinformação, foram a marca da atual administração”, afirmam. “Não faltam ao Brasil sistema de saúde universal, rede de saúde comunitária, dados suficientes, pesquisadores incansáveis no avanço do conhecimento. O que falta é o compromisso da liderança para salvar vidas.”

Terremoto na Saúde

Folha de S. Paulo

Novas acusações de corrupção na compra de vacinas emparedam Bolsonaro e centrão

São estarrecedores os relatos que vêm à tona sobre negociações supostamente conduzidas pelo governo Jair Bolsonaro com fabricantes de vacinas contra a Covid-19.

Acumulam-se indícios de que aliados do presidente, funcionários públicos e atravessadores buscaram ganhos indevidos nas sombras, enquanto o mundo corria atrás de imunizantes e milhares de brasileiros morriam nos hospitais sem proteção contra a doença.

Em entrevista à Folha, Luiz Paulo Dominguetti Pereira, que se apresenta como representante de um distribuidor que ofereceu milhões de doses da AstraZeneca ao Ministério da Saúde, disse ter sido informado em fevereiro de que a conversa só avançaria se aceitasse pagar propina de US$ 1 por dose.

Segundo ele, o recado foi dado pelo então diretor da área de logística do ministério, Roberto Ferreira Dias, um dos funcionários indicados para a pasta pelo PP, sigla à frente do bloco que dá sustentação a Bolsonaro no Congresso.

Na semana passada, o deputado Luis Miranda (DEM-DF) e seu irmão Luis Ricardo, servidor de carreira do ministério, contaram à CPI da Covid que denunciaram em março ao próprio presidente pressões que teriam ocorrido durante tratativas para aquisição de outra vacina, a indiana Covaxin.

Bolsonaro prometeu mandar a Polícia Federal investigar o caso, mas não o fez. Nesta terça, soube-se pela revista Crusoé que, segundo Miranda, um lobista ligado ao PP fez uma oferta milionária para comprar seu silêncio depois do encontro com o presidente.

Acertadamente, o Ministério da Saúde demitiu Ferreira Dias na noite de terça, horas após anunciar a suspensão do contrato da Covaxin. Ainda resta muito a esclarecer nos dois casos, mas a gravidade das suspeitas justifica as medidas preventivas tomadas.

A sucessão de escândalos cria um abalo para Bolsonaro e um dos fiadores de seu casamento com o centrão, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e padrinho de ocupantes de postos-chave na pasta da Saúde, que chefiou no governo Michel Temer. Barros foi chamado a se explicar à comissão parlamentar.

Nada é mais revelador do tremor provocado na aliança que o comportamento errático do presidente, que costumava pôr a mão no fogo por seus ministros e nesta semana procurou fugir de responsabilidades e se distanciar da confusão, dizendo não ter como saber tudo que seus auxiliares fazem.

Com a decisão do subserviente —e candidato a uma indicação presidencial ao Supremo— procurador-geral, Augusto Aras, de cruzar os braços até que a CPI conclua suas investigações, resta esperar que os parlamentares façam seu trabalho com rigor e celeridade para esclarecer as gravíssimas suspeitas.

Triste espetáculo

Folha de S. Paulo

Da polícia ao presidente, autoridades exploram sem escrúpulos morte de criminoso

Ao longo de três semanas, a população em torno de Águas Lindas de Goiás, vizinha a oeste da capital federal, enfrentou compreensível desassossego, se não pânico, com a perseguição a Lázaro Barbosa, apontado como autor de uma chacina na cidade-satélite de Ceilândia (DF) no dia 9 de junho.

Naquele crime brutal, segundo a polícia, Barbosa matou Cláudio Vidal, dono da chácara, e dois filhos. Levou a mulher de Vidal como refém e depois, já em fuga, também a assassinou. Três dias depois teria disparado contra três homens, roubado armas e veículos e trocado tiros com fazendeiros.

Montou-se operação espetacular de busca ao criminoso —de longo histórico de mandados de prisão e fugas. Centenas de policiais vasculharam a área, por longos dias de insucesso, até que o emboscaram e abateram disparando 125 tiros, dos quais 38 acertaram Barbosa.

A saga despertou compreensível interesse do público —e o desenlace provavelmente resultou em alívio para os moradores das redondezas. Não há o que celebrar, porém, na exploração do caso por autoridades de todos os escalões.

Proliferaram em instantes cenas deprimentes de agentes públicos a comemorar o desfecho sangrento, de policiais ao governador e ao próprio presidente da República.

“CPF cancelado”, permitiu-se escrever Jair Bolsonaro em rede social. Reproduziu, com a falta habitual de decoro, um bordão vil cunhado em programas de TV que enaltecem a execução de meros suspeitos por agentes armados.

Fomenta-se, desde o ápice do poder civil, uma cultura de vingança em substituição à Justiça, de brutalidade policial em lugar do império da lei. Não existe pena de morte no Brasil, cabe relembrar.

Não se trata aqui de condescendência com criminosos —e o fato de um indivíduo obviamente perigoso ter estado foragido por tanto tempo decerto configura uma fragilidade do poder público. Entretanto as teses populistas para a segurança resultam, inevitavelmente, em más políticas de governo.

Num exemplo, Bolsonaro usou o caso para defender sua temerária ofensiva para facilitar o acesso da população a armas de fogo.

Barbosa portava mais de R$ 4.000 ao ser baleado; não se sabe se agiu a mando de terceiros e de quantas conexões dispunha. Sua morte no mínimo dificulta tal investigação, o que deveria ser lamentado.

O dever de cada um

O Estado de S. Paulo

O pedido de abertura de inquérito para investigar se Jair Bolsonaro cometeu crime de prevaricação deixa claro quem está cumprindo seu papel.

Os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-ap), Fabiano Contarato (Rede-es) e Jorge Kajuru (Podemos-go) enviaram ao Supremo Tribunal Federal, na segunda-feira passada, uma notícia-crime pedindo a abertura de inquérito para investigar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de prevaricação.

Na atual conjuntura, a iniciativa dos senadores tem escassas chances de prosperar, mas tem o mérito de deixar claro quem está cumprindo seu papel constitucional e quem está apenas servindo aos interesses do presidente Bolsonaro.

A notícia-crime diz respeito à informação de que Bolsonaro não teria tomado providências ao tomar conhecimento, por meio de um funcionário do Ministério da Saúde e por um deputado federal, de que talvez estivesse em curso um esquema de corrupção na compra da vacina indiana Covaxin.

“Tudo indica que Bolsonaro, efetiva e deliberadamente, optou por não investigar o suposto esquema de corrupção levado a seu conhecimento”, diz a petição dos senadores. Para os parlamentares, essa atitude sugere que Bolsonaro ou estava envolvido diretamente no esquema ou estava protegendo algum “amigo do rei”. Se for confirmada, a omissão do presidente caracteriza prevaricação – crime comum, previsto no artigo 319 do Código Penal.

Se tudo for feito como manda o figurino constitucional, o Supremo encaminha a petição – como já o fez – à Procuradoria-geral da República (PGR). Se achar que é o caso, a PGR determina a abertura de inquérito, por meio da Polícia Federal, e, havendo indícios de autoria e materialidade, apresenta ao Supremo uma denúncia contra o presidente por crime comum. Em seguida, o Supremo envia o caso para a Câmara, que decidirá se autoriza a continuidade do processo contra Bolsonaro, por meio de votação em plenário. Em caso de aprovação, com o voto de dois terços dos deputados, cabe ao Supremo decidir se abre o processo – e, nessa hipótese, o presidente é afastado do cargo até o julgamento, que deve ocorrer num prazo de 180 dias.

Como se observa, é longo e tortuoso o processo de responsabilização criminal do presidente da República, e é bom que assim o seja, para preservar não a pessoa do presidente, mas o cargo. No entanto, essa proteção institucional não pode ser pretexto para blindar Bolsonaro, impedindo que ele responda por seus atos.

A Procuradoria-geral da República, por exemplo, resolveu não tomar nenhuma providência até que a CPI da Pandemia conclua seus trabalhos, o que ainda está longe de acontecer.

Em resposta ao Supremo, o subprocurador-geral, Humberto Jacques de Medeiros, considera que a CPI é o “mais potente instituto de investigação no direito brasileiro”, razão pela qual a PGR, titular da ação penal pública, não pretende fazer nada por ora porque a comissão parlamentar já está investigando o caso.

Não foi esse o entendimento da PGR na época do escândalo do mensalão, em 2006: a Procuradoria investigou o esquema de corrupção ao mesmo tempo que uma CPI avaliava o caso, e a denúncia que ofereceu na época foi até mais dura do que as conclusões da comissão parlamentar. Ou seja, naquela oportunidade a PGR, cuja independência é assegurada pela Constituição, não renunciou às suas atribuições.

Hoje, a PGR do sr. Augusto Aras, que aspira a receber indicação para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal, abdica de investigar o presidente. Mas não é o único a vacilar ante suas obrigações, por insondáveis razões.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a quem cabe analisar o requerimento de prorrogação da CPI da Pandemia – que já obteve o número necessário de assinaturas –, informou que só o fará ao final do prazo atual de funcionamento, em 7 de agosto. As novas denúncias, que envolvem diretamente o presidente da República, demandam a continuidade das investigações, mas o senador Pacheco – que era contrário à CPI e só a instalou por ordem do Supremo – continua inclinado a dar uma força ao governo.

Diante de um escândalo tão grave, aqueles que têm algum papel em sua elucidação têm o dever cívico e moral de o cumprir. Não fazê-lo, para proteger quem quer que seja, equivale a ser cúmplice.

A ciência na segurança pública

O Estado de S. Paulo

Agências de fomento e universidades aliam-se para aprimorar políticas de segurança pública

Com 28 mortos, a tragédia do Jacarezinho poderia ter sido evitada se, em vez de se limitar à repressão, a Polícia Civil do Rio de Janeiro trabalhasse de modo mais eficiente nos setores de informação e inteligência. Essa foi a opinião unânime dos especialistas em segurança pública na ocasião.

Para tentar pôr fim a tragédias como essa, um grupo de instituições se uniu para trazer para essa área os mais modernos recursos da ciência de dados. O objetivo é criar mecanismos mais eficientes de avaliação de políticas públicas, desenvolver estratégias de prevenção de crimes e compreender como a violência em cada setor social e em cada bairro de uma cidade acaba impactando toda a sociedade. A ideia é usar a matemática para analisar informações que permitam soluções para problemas antigos e até hoje não resolvidos.

A iniciativa foi anunciada em janeiro deste ano e se tornou mais conhecida depois da tragédia do Jacarezinho, notabilizada não só pelo número de mortos, mas, também, por causa da infeliz declaração de um dos responsáveis pela operação da Polícia Civil. Segundo ele, nas favelas do Rio de Janeiro os serviços de inteligência e informação não seriam eficazes. As duas instituições que assumiram a responsabilidade de financiar essa experiência são o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

As instituições que assumiram a responsabilidade de promover a experiência, por meio de seus pesquisadores, são o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e a Fundação Getulio Vargas (FGV), por meio do Departamento de Tecnologia e Ciências de Dados da Escola de Administração de Empresas em São Paulo. O projeto também terá a colaboração da Escola de Matemática Aplicada da FGV e a participação da área de projetos estratégicos da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo. Contará, ainda, com um Conselho Consultivo Internacional, integrado por pesquisadores de instituições mundialmente conhecidas por suas atividades de inovação em segurança pública.

Juntas, essas instituições criaram o Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (CCAS), que terá a função de definir a estrutura de um sistema de pesquisas e conhecimento que permita o uso da inteligência artificial nas decisões das diferentes instâncias governamentais em matéria de segurança pública. Segundo os idealizadores dessa iniciativa, as polícias costumam deslocar contingentes para as regiões mais problemáticas, obtendo resultados imediatos. Contudo, não têm efetivos suficientes para cobrir toda uma cidade, o que leva o crime organizado a se deslocar espacialmente. Assim, por serem pensadas para o curto prazo, as decisões das polícias não têm maior rigor científico, dizem eles. Também lembram que, apesar de os órgãos de segurança estarem aumentando a instalação de câmeras nas cidades, eles ainda não sabem interpretar em profundidade as imagens registradas. Modelos computacionais e estatísticos ajudam a prever de modo mais eficiente crimes como roubos de carga e de caixas eletrônicos, dizem eles.

Para ganhar tempo, inicialmente o CCAS priorizará as bases de dados do governo paulista, que tem o maior banco de informações sobre segurança pública em toda a Federação. Alguns Estados já dispõem de bases de dados consistentes, mas que ainda têm de ser integradas nacionalmente. Na fase seguinte, o CCAS pretende adaptar o conhecimento à realidade das demais regiões do País e propor medidas com bases estatísticas para a formulação de políticas de segurança.

Neste momento em que no plano federal a ciência é desprezada pelo negacionismo do governo Bolsonaro, experiências como a criação do CCAS e como a que vem sendo desenvolvida no Rio de Janeiro pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, com o objetivo de estudar a correlação entre custo financeiro das políticas de segurança pública e obtenção de resultados, merecem todo o apoio, tal o medo generalizado com que vive a população.

O preço do negacionismo

O Estado de S. Paulo

O Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 13% das mortes por covid-19

Estima-se que, de 500 mil mortes por covid no País, 400 mil poderiam ter sido evitadas.

Amentira tem pernas curtas, mas corre rápido – na era digital, mais ainda. E, em tempos de pandemia, ela mata. Do mais de meio milhão de mortes por covid-19 registradas no Brasil, quantas foram causadas pela guerra do negacionismo contra a ciência?

Um estudo apresentado à CPI da Pandemia pelo Grupo Alerta – formado por entidades da sociedade civil, entre elas a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência – estimou que, das cerca de 300 mil mortes nos 12 primeiros meses da pandemia, apenas as medidas não farmacológicas (como máscaras, distanciamento social, vigilância epidemiológica e testagem) poderiam ter evitado 120 mil. Na mesma CPI o epidemiologista Pedro Hallal estimou que, tudo somado, de 500 mil mortes, 400 mil poderiam ter sido evitadas.

Como admitem os próprios pesquisadores, são números aproximados. O cálculo do Alerta, por exemplo, projeta sobre o Brasil a taxa de efetividade na redução do contágio por medidas não farmacológicas, estimada em 40% por estudos publicados em revistas científicas como a Science ea Nature. Já o cálculo de Hallal baseia-se na diferença entre o desempenho do Brasil e a média mundial. Uma comparação exata precisaria computar variantes conjunturais e estruturais complexas, que envolvem desde diferenças demográficas, ambientais, sanitárias e possivelmente étnicas entre os países, até as estimativas de subnotificação.

Mas isso não significa, como sugeriu o senador governista Eduardo Girão, que essas projeções possam ser reduzidas a mera “guerra de narrativas”. Nenhuma narrativa pode contornar o fato de que o Brasil tem 2,7% da população mundial, mas concentra 13% das mortes.

No caso da vacinação, a mensuração é razoavelmente precisa. Só o atraso na compra das vacinas da Pfizer e da Coronavac – causado exclusivamente pela negligência amplamente documentada do governo – resultou, pelos cálculos de Hallal, em 95,5 mil mortes. A estimativa é conservadora: outras pesquisas sugerem 145 mil mortes pela intempestividade da vacinação.

Muito mais difícil é estimar quantas mortes foram causadas pela campanha ostensiva de desinformação do presidente Jair Bolsonaro. É preciso doses extras de cautela. Nem todo apoiador de Bolsonaro é negacionista, e muitos antibolsonaristas são. Mas uma pesquisa publicada pela Universidade de Cambridge constatou que nas cidades onde Bolsonaro teve maioria absoluta de votos no primeiro turno, o isolamento social cai tipicamente entre 10% e 20% por semana a cada pronunciamento negacionista do presidente. O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde verificou uma aceleração das mortes nos Estados e municípios que mais votaram em Bolsonaro em 2018.

A “infodemia” não é apanágio do presidente. O fenômeno é difuso e se alastrou pelo mundo com tanta ferocidade quanto o vírus. Mas sob Bolsonaro o governo se transformou numa máquina de disseminação.

Em diagnóstico sobre a transparência e acesso à informação, a ONG Artigo 19 fez uma série de pedidos de informação ao governo referentes a políticas como o aplicativo Trate-cov, o “Kit Covid” (de “tratamento precoce”), o plano de imunização e a disponibilidade de seringas e cilindros de oxigênio. Dos 20 pedidos, 75% tiveram retorno insuficiente. Quanto à conformidade das informações prestadas, 85% delas foram classificadas como “infodemia”, sendo 35% como “informação desonesta” (contrárias às evidências científicas); 25% como “desinformação intencional” (informações falsas mescladas a verdadeiras para se passarem por legítimas); 20% como “apagão” (dados que deveriam ser públicos, mas foram negados); e 5% como “informação parcial”. Como conclui a pesquisa, “a não informação e a informação conflitante foram bases das declarações do governo na condução da política de saúde”.

Aos poucos os modelos estatísticos aliados a evidências epidemiológicas depurarão coeficientes mais exatos de quantas vidas foram perdidas pelo negacionismo do presidente. Desde já, é certo que não foram nem uma nem duas, mas dezenas de milhares.

PEC do voto impresso a caminho do arquivamento

Valor Econômico

A vitrine da CPI da Covid será uma fonte de desgaste diário ao Planalto nos próximos meses

Ao que tudo indica, e felizmente, está perto do naufrágio a proposta de emenda constitucional que institui o voto impresso, de autoria da deputada ultrabolsonarista Bia Kicis (PSL), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), uma das mais importantes da Câmara. Há um endosso firme à PEC por parte do presidente Jair Bolsonaro que, conta com sua aprovação e que marcou em seu calendário o dia das eleições como o mais importante para as arruaças que pretende promover para não deixar o poder.

Bolsonaro já disse que só Deus o tira do Planalto e que só roubando alguém (no caso, o ex-presidente Lula) é capaz de derrotá-lo em eleições limpas - isto é, com voto impresso. Seu ídolo, o ex-presidente Donald Trump, inscreveu esse tipo de mentira e de sabotagem no manual dos autoritários de plantão. Também bem antes do pleito, Trump disse que seria roubado nas eleições que seriam as mais sujas da história dos Estados Unidos. Perdeu e incitou correligionários a invadirem o Congresso para impedir a sessão que consagraria o democrata Joe Biden como novo presidente. O escândalo é que houve a invasão e mortes, no país mais poderoso do mundo e de fortes tradições democráticas (na política interna).

O presidente da República, que atacou a existência de fraudes até mesmo no pleito em que foi eleito - disse que teria ganho no primeiro turno - vem preparando o terreno para uma “convulsão” do gênero. Para ele, se não houver voto impresso, “o Brasil poderá ter um problema pior” do que o que houve nos EUA. A proposta deverá ser arquivada por falta de apoio no Congresso, o que incluiu a nova base governista.

O próprio Centrão, que sustenta o governo, deu um tiro certeiro na obsessão do presidente. Em reunião no sábado, presidentes de 11 partidos concordaram em não apoiar o voto impresso. Entre eles estavam Ciro Nogueira, do PP, Valdemar Costa Neto, do PL, Marcos Pereira, do Republicanos. Com apoio de PMDB, PSDB, Solidariedade, PSD, o PSL de Luciano Bivar, Cidadania e Avante, formam um bloco de 326 deputados e 55 senadores, quase dois terços das duas Casas. Para que a PEC 135/2019 do voto impresso seja aprovada é preciso que obtenha voto de 308 deputados em dois turnos.

Em outra frente, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Luis Felipe Salomão, fez algo simples e direto para por fim à campanha mal intencionada do presidente contra um sistema eletrônico de votação que funciona bem há um quarto de século: deu 15 dias para que Bolsonaro apresente evidências ou informações comprobatórias da existência de fraudes nas urnas eletrônicas. É improvável que Bolsonaro apresente qualquer argumento fundamentado de suas convicções como, de resto, não o faz para a maioria delas.

Uma vez no poder, Bolsonaro desde o primeiro dia não pensa em largá-lo mais e desde então busca a reeleição, embora não tenha o menor apetite para exercer as tarefas cotidianas de chefe do Executivo. A oposição do Legislativo a uma proposta infame, que, ela sim, abre um enorme espaço à fraude e à chicanas já antevistas pelo presidente, pode não ser um obstáculo intransponível para que ele tumultue as eleições. Bolsonaro manda recados a toda hora e muda o tom. “Se não tiver voto impresso, é sinal que não vai ter eleição! Acho que o recado está dado”, disse no dia 6 de maio.

O voto impresso na versão bolsonarista é a crônica do tumulto antecipado. Segundo o relator da PEC, nas urnas que já tem dispositivo para imprimir o voto, a contagem dos votos terá de ocorrer no sistema impresso e não no sistema eletrônico. A validação, se a proposta for aprovada, é inversa, do meio menos seguro e menos sujeito à manipulação em favor do mais vulnerável. As urnas eletrônicas seriam mero apêndice dos votos que imprimem, que nunca foram manipulados e pela proposta poderão ser.

Mesmo com o suporte vital do Centrão, a um preço caro e visível, o presidente Bolsonaro, por suas palavras e atos, tem se enfraquecido eleitoralmente. A vitrine da CPI da Covid, que além do aberrante negacionismo do governo começou a expor indícios de corrupção na compra de vacinas no Ministério da Saúde, será uma fonte de desgaste diário ao Planalto nos próximos meses. Encurralado pelas instituições, a base de Bolsonaro pode não ser forte o suficiente para estimulá-lo a aventuras e desrespeito terminal por regras democráticas, pelas quais sempre mostrou desprezo.

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