O Globo
Acabou. É uma questão de tempo e de
processo. O governo Bolsonaro terminará pela soma imensa dos seus erros. Não
foram erros de gestão, apenas. Foram crimes. E eles foram tantos, tantos que
atravessam os códigos legais, a Lei 1079 do impeachment, a Constituição. Ele
feriu o primeiro direito. O da vida. Quanto tempo Arthur Lira pode ignorar o
superpedido de impeachment protocolado ontem? Ele tem o poder de fazer um
pedido, mesmo substantivo e plural, ficar parado na gaveta, mas há forças
demais se movendo na mesma direção. Um governo que quer US$ 1,00 de propina por
dose de vacina está, na verdade, sequestrando o país e pedindo resgate.
Publiquei neste espaço, em 3 de maio de 2020, uma coluna com o título “Sem medo do impedimento”. Eram 7.051 mortes. Bolsonaro persistiu na mesma atitude e isso nos trouxe aos atuais 518 mil mortos. É completamente equivocada a ideia de que o Brasil “naturalizou” o impeachment e por isso ele deveria ser evitado. Esse argumento é de corar um estudante de Direito. Equivale a propor que um instrumento jurídico não seja usado porque já o foi no passado. É o mesmo que dizer que a lei não pode ser aplicada para não gastar.
Nunca foi tão justo quanto agora, diante do
mar de mortos que está diante de nós, pedir o impeachment do presidente. Jair Bolsonaro
tomou decisões que provocaram a morte de brasileiros. E ele também ameaça
diariamente as instituições democráticas. A lista dos 23 tipos penais arrolados
no superpedido de impeachment ontem apresentado por instituições da esquerda e
da direita não deixa dúvidas. Há razões superlativas para que ele seja tirado
do cargo que desonra diariamente.
A CPI está mostrando de forma exuberante os
crimes do presidente nesta pandemia. São tantos que há pelo menos quatro
trilhas de investigação. Ação deliberada para espalhar o vírus, que está
tipificado como crime de epidemia; omissão e atrasos nas compras de vacinas;
disseminação de remédio com ineficácia comprovada; formação de estrutura
paralela ao governo. E, agora, prevaricação. Foi informado de irregularidades
com dinheiro público, sabia quem era o suspeito, não mandou investigar. Em
reação retardada, o governo vai mudando versões para dizer que investigou. As
versões não param em pé. São tão ilógicas que os governistas na CPI leem o que
vão falar. Não guardariam de memória essas mudanças constantes de enredo. E
novas acusações surgem, como a que a repórter Constança Rezende, da “Folha de
S.Paulo”, revelou sobre o pedido explícito de propina ouvido pelo empresário
Luiz Paulo Dominguetti Pereira no Ministério da Saúde.
Na sessão de ontem da CPI, o empresário
bolsonarista Carlos Wizard fez uma triste figura. “Eu me reservo o direito de
ficar em silêncio.” Mas os vídeos apresentados eram arrasadores. Neles, Wizard,
rindo, sustentava a tese de que os “cinco mortos” no município de Porto Feliz,
no interior de São Paulo, tiveram culpa na própria morte. “Ficaram em casa, não
foram em busca do tratamento precoce.” Em outro vídeo, já eram 50 os mortos. O
que será que ele diria agora se não tivesse emudecido?
Wizard, a exemplo de Bolsonaro, usa a
palavra de Deus como se a Bíblia fosse dele. Chegou carregando um cartaz que
citava um versículo de Isaías. A senadora Eliziane Gama do Cidadania o
respondeu mostrando intimidade com a Bíblia. Em uma das citações que ela fez,
também do profeta Isaías, há o alerta contra líderes que são “amigos dos
ladrões e amam o suborno” e “não defendem os direitos dos órfãos e das viúvas”.
O Brasil é um país laico, mas tem sido abusivo ver o presidente e seus
seguidores usarem a Bíblia de forma proprietária. Por isso, a resposta da
senadora fazia todo o sentido.
O superpedido de impeachment produziu uma
cena rara, de união no mesmo palanque de políticos da esquerda e da direita
ex-bolsonarista, que discordam sobre todo o resto, mas concordam que Bolsonaro
é o pior presidente da História, que ele ampliou o número de mortes com as
escolhas que fez e reitera a cada dia.
Entre o pedido de impeachment e seu
andamento há o presidente da Câmara. Mas os processos políticos têm dinâmica
própria. Lira diz que não há votos necessários, da mesma forma que tantos
diziam que não era a melhor hora da CPI. Um governo não termina quando acaba.
Bolsonaro vai atacar, mentir, manipular, ameaçar, cooptar e usar os poderes da
Presidência. As instituições terão de persistir em defesa da vida dos
brasileiros.
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