O Estado de S. Paulo
No Brasil sem rumo, faltam projetos e sobram arroubos de autoritarismo
O Brasil precisa de um governo pelo menos
para chamar de ruim. Desgovernado há quase três anos, este é um país sem rumo,
sem projeto de crescimento, sem segurança institucional e sem perspectiva de
modernização. Inflação acima de 8% em 12 meses e desemprego superior a 14%
batem recordes. A vacinação continua atrasada e sujeita a interrupções, por
causa de erros escandalosos – e mortíferos – cometidos pelo poder central no
enfrentamento da pandemia. Credores de precatórios estão arriscados a um
calote, a política fiscal é cheia de remendos e o teto de gastos pode ficar
cheio de furos, mas sem criar um chão de estrelas. Ameaças de golpe, discursos
de ódio e falsidades compõem a maior parte das manifestações do presidente da
República, o mais inepto, mais inoperante e mais desastroso chefe de governo da
História nacional. Num de seus muitos arroubos ditatoriais, ele ameaçou agir
fora da Constituição para enfrentar o Poder Judiciário. Quanto custará aos
brasileiros mais um ano dessa catástrofe?
Avesso ao interesse público, o presidente
permanece empenhado na reeleição, na prevenção de um impeachment e na proteção
de filhos sujeitos a investigações criminais. Sua atividade política se
concentra em arranjos eleitorais, em acertos com o Centrão, agora instalado na
chefia da Casa Civil, e na mobilização de adeptos. Para falar com seus
apoiadores basta circular pelo Brasil, participar de algumas inaugurações e
promover ajuntamentos e passeatas de motos.
Mensagens significativas sobre projetos para o País são dispensáveis, além de obviamente superiores à sua capacidade. Nenhum discurso elaborado é necessário para defender a cloroquina como remédio anticovid, depreciar as instituições e estimular manifestações a favor do voto impresso. Seus apoiadores têm-se mostrado pouco exigentes quanto a planos de governo, valores morais e padrões de gestão pública, mas demonstram habilidade, é preciso reconhecer, para desfilar em motocicletas.
Em manifestação menos barulhenta, a
proposta de ressurreição da velha cédula foi rejeitada por 23 votos a 11 em
comissão especial da Câmara, na quinta-feira. Em condições mais civilizadas, o
projeto seria logo abandonado, mas ainda se especulava, na sexta-feira, sobre
uma possível votação em plenário na semana seguinte. Isso dependeria do
presidente da Casa, o deputado Arthur Lira, ainda silencioso em relação às
últimas ameaças golpistas do chefe de governo e às reações de vários setores.
Nem o grande manifesto em defesa do sistema
eleitoral, firmado por empresários, professores, artistas, banqueiros,
ex-ministros, líderes religiosos e ex-presidentes do Banco Central, pareceu
chamar a atenção do presidente da Câmara. Postado na internet, esse manifesto,
na quinta à noite, já tinha mais de 7 mil assinaturas.
É falso o falatório do presidente Bolsonaro
contra a urna eletrônica. Nenhuma prova de fraude foi encontrada em um quarto
de século. O sistema é auditável, sua segurança tem sido comprovada e nenhum
hacker conseguiu invadi-lo, porque as urnas funcionam sem ligação em rede. O
voto impresso “seria ótimo para os caciques políticos” e facilitaria o retorno
das fraudes, disse ao Estado, em julho, o ex-presidente do Tribunal Superior
Eleitoral Carlos Velloso, responsável pela implantação do voto eletrônico.
Caciques políticos tiveram desde o Império
enorme poder eleitoral, impondo sua vontade às populações locais. O coronelismo
é um velho fenômeno brasileiro, estudado amplamente por historiadores e outros
cientistas sociais. Milícias apareceram há menos tempo, com a expansão e a
consolidação do crime organizado em áreas urbanas. Também são conhecidas por
sua participação nos negócios, na venda de proteção e na vida política. No
Estado do Rio de Janeiro, essa presença tem sido ostensiva.
Coronéis, outros mandachuvas locais e
milicianos seriam os grandes beneficiários de um retorno ao velho sistema. Uma
vitória de Bolsonaro, nesse debate, será partilhada com todas essas pragas da
vida política brasileira, mas isso será impossível se o assunto for enterrado
no Congresso.
Há mais que falsidades e baboseiras, no
entanto, na campanha a favor do voto em papel. Com qualquer sistema, Bolsonaro
sempre poderá, imitando seu líder Donald Trump, contestar o resultado da
eleição, se for derrotado. Ou talvez nem haja eleição, se faltar o voto
impresso. Ele repetiu essa ameaça várias vezes.
Até o empresariado, silencioso por muito
tempo diante das barbaridades bolsonarianas, decidiu mobilizar-se para frear o
presidente. Nem é preciso pesquisar as convicções de quem assinou o manifesto.
Alguns devem ser democratas fervorosos. Outros podem ser mais flexíveis. Mas
todos devem ter percebido um fato inegável: diante de um golpe, a reação dos
grandes parceiros capitalistas seria muito ruim para a economia brasileira.
Democracia, agora, é essencial para os negócios, exceto, talvez, se o País for
uma potência de proporções chinesas, governada como a China nos últimos 30
anos. Com Bolsonaro, nem pensar.
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