O Estado de S. Paulo
Os democratas têm um patrimônio a preservar: a democracia liberal, na acepção contemporânea
O surgimento de uma terceira via eleitoral
seria muito importante para a democracia brasileira. Não apenas ofereceria uma
opção alternativa ao eleitor, mas também romperia uma bipolaridade que
empobrece o debate público e carrega de nuvens pesadas o horizonte político
brasileiro. As chances de uma terceira via estar no segundo turno são
diretamente proporcionais à sua capacidade de deslocar Jair Bolsonaro para fora
dele. Já seria um feito extraordinário, pois Lula da Silva não representa uma ameaça
à democracia brasileira, ao contrário do atual presidente.
Para chegar lá a terceira via terá de
marcar diferenças nítidas em relação ao candidato do PT e deixar claro o seu
antagonismo com Bolsonaro e o que ele representa. É absurdo apresentar-se como
ponto equidistante dos dois extremos. Repito aqui o que Miriam Leitão disse de
forma lapidar: nessa disputa só há um extremista, Bolsonaro. Não é hora de
“doisladismos”, mas de traçar a linha divisória entre o campo democrático e o
autoritário.
Pode-se criticar o PT e Lula por inúmeras razões, a começar por sua vocação hegemonista, mas é preciso reconhecer que o ex-presidente poderia ter mudado a regra do jogo e sido eleito para um terceiro mandato consecutivo, mas não o fez; que nem seu governo nem o de sua sucessora avançaram sobre a autonomia do Ministério Público; e que Dilma Rousseff não interveio na Polícia Federal para bloquear a Operação Lava Jato. Isso para mencionar apenas alguns fatos relevantes que indicam as credenciais democráticas do PT, em que pese o partido pagar tributo a regimes autoritários ditos de esquerda e demonstrar atração pelos populismos latino-americanos.
Dentro do campo democrático há diferenças
importantes. Lula caminhará para o centro político, seguindo sua experiência,
sua intuição e seu estilo. Mas carregará na bagagem um conjunto de ideias
anacrônicas, a julgar pelo que se lê e ouve em documentos e declarações dele
próprio e do seu partido. Na crítica à “entrega do pré-sal às empresas
estrangeiras”, sobressai o velho nacional-estatismo, que parece sobreviver
mesmo depois da negativa experiência do governo Dilma. No ataque sem
qualificação ao teto de gastos, destaca-se o voluntarismo fiscal, como se
qualquer regra disciplinadora referente ao gasto, fundamental para assegurar a
solvência do Estado e o equilíbrio macroeconômico, fosse uma indevida concessão
ao mercado em detrimento do povo. Nas justificativas esfarrapadas para ações de
regimes autoritários, vê-se o subsistente anacronismo de uma esquerda que
resiste a assumir a democracia como valor universal. Na estigmatização da
Operação Lava Jato, como se o PT tivesse sido vítima de uma conspiração,
nota-se a inclinação mistificadora característica de líderes, partidos e
movimentos com tendências populistas.
Demarcar diferenças com relação a Lula e à
coalizão de forças que a ele se juntará não deve levar a terceira via a
embarcar no antipetismo furibundo, reacionário e preconceituoso. De hoje até a
data do primeiro turno das eleições do próximo ano, a prioridade deve ser o enfrentamento
político e eleitoral com Bolsonaro. Nesse período, não haverá dificuldade maior
em conciliar a defesa de valores com a tática eleitoral, visto que a terceira
via só chegará ao segundo turno se o atual presidente ficar pelo meio do
caminho. Na hipótese de o segundo turno se dar entre o candidato da terceira
via e Lula, é preciso não perder de vista que, além de derrotar Bolsonaro,
importa não repetir os erros que o levaram à Presidência. Um desses erros foi a
polarização autodestrutiva que se estabeleceu entre o PSDB e o PT ao longo de
mais de 20 anos.
Não repetir esse erro implica reconhecer
que a diferença política fundamental está entre democratas e não democratas,
entre quem se recusa e quem se dispõe a recorrer à força e à intimidação para
vencer, quando não destruir adversários transformados em inimigos políticos.
Não petistas e petistas, se democratas, têm um patrimônio comum a preservar: a
democracia liberal, na sua acepção contemporânea, que agrega os direitos
sociais e ambientais aos civis e políticos e se abre para as mudanças na
sociedade em favor da igualdade na diversidade. A Presidência de Bolsonaro e a
experiência com o bolsonarismo nos ensinou que a democracia não está
assegurada, nem mesmo nos seus elementos mais básicos.
Além de derrotar Bolsonaro, será necessário
refazer, para reforçá-lo, o pacto democrático estabelecido em 1988, agora com
outros atores políticos e novas forças sociais, à luz das lições aprendidas
desde então, em especial a persistência, sob novas vestes e formas, do
patrimonialismo e do corporativismo, que capturam o sistema político e o
Estado. Tão ou mais importante será ter clareza sobre os desafios das próximas
décadas: como preparar o País para, com o uso das novas tecnologias, melhorar a
qualidade da sua democracia e do seu desenvolvimento, tornando-o mais “verde” e
mais includente?
A terceira via precisa oferecer respostas
consistentes a essa questão. Perdendo ou ganhando, é importante que tenha força
política para participar da construção do futuro do País.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP
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