Folha de S. Paulo
Se Bolsonaro chegar ao golpe, será porque
teve permissão
O suspense que aguarda os próximos espasmos
institucionais exprime a fragilidade, tão negada, do sistema de defesa da
legalidade democrática. Um desvairado lançou o país nas impropriedades que quis
e disse à vontade idiotices até letais, sem reação de parte alguma dos chamados
Poderes instituídos durante dois anos e sete meses — já quase três quartos do
mandato presidencial. A esta altura, mesmo a reação incipiente é envolta em
crise a se tornar ainda mais grave.
O agravamento é inevitável. E imprevisível
no sentido e na dimensão. Bolsonaro o busca. Sozinho, o Judiciário pode ser
heroico, não uma certeza. O Congresso está reduzido a um não-poder: os
presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, mostram não
estar à altura do momento, nem sequer dos cargos. A
Procuradoria-Geral da República está contida pelo carreirismo de Augusto Aras.
Bolsonaro, por sua vez, foi forçado a uma reviravolta. Assumiu como agente de um plano cultivado no ressentimento de um segmento pretensioso e já velhusco do Exército. A profusão de militares, em estimados seis mil cargos civis, é devida ao plano mais que ao testa-de-ferro. O início do mandato foi de desenvolturas arrogantes, com medidas desafiadoras e provocações insolentes. Cada uma das decisões de governo, da proteção ao garimpo e ao desmatamento ilegal até os ataques à educação e à cultura, encontra conexão com alguma das questionadas teses de militares reformados e ativos.
Os surgimentos simultâneos da apropriação de dinheiro público por Flávio Bolsonaro com as rachadinhas, Fabrício Queiroz e ensombreadas referências no caso Marielle Franco, como as relações milicianas, tiveram dois efeitos imediatos. A revelada vulnerabilidade de Bolsonaro enfraqueceu-o, na política e na comunicação pública. E logo abriu uma rotina de desgastes que o tirou da arrogância para a exasperação. Seu interesse transitou, mais a cada dia, do plano original para o interesse pessoal e familiar.
Nesse crescendo, as mortes da
pandemia passam de meio milhão, a CPI da Covid desnuda a corrupção do
negocismo com vacinas, a percepção da responsabilidade cloroquínica de
Bolsonaro difunde-se pelo país afora.
Negação das aparências, sua situação é
problemática. Três necessidades desesperadas precisam combinar-se para dar-lhe
a saída: impedir que a CPI avance muito mais, tendo fracassado a interferência
de militares para fazê-lo; impedir que a tendência
das pesquisas eleitorais se consolide; e impedir que os inquéritos
prossigam, tanto os estagnados como os recentes, tanto os seus como os de filhos.
Não há caminhos legais para concretizar tal
combinação. Mesmo Bolsonaro pode pressentir o futuro penoso que o espera se não
ultrapassar o acúmulo de ameaças judiciais que o circunda, não só aqui.
Resta-lhe o caminho ilegal: outra combinação, de ilegalidade e violência.
Alternativa já iniciada, com a multiplicação da presença nas ruas para
incitá-las contra as instituições, em especial contra o Judiciário.
Abrir tantos conflitos quanto possa,
estimular a falsa representação das Forças Armadas pelos Pazuellos da reserva e
da ativa. Agredir, incitar, exasperar. Gerar ímpetos de presumidas vinganças
sociais, econômicas e políticas, motivações do ódio disseminado.
Bolsonaro precisa da deflagração de um
estado tumultuoso, anti-instituições, contra a Constituição. Propagado por
policiais militares, milicianos e pelos novos detentores de armas, se não
também por setores do Exército. Quando
fala em “sair das quatro linhas da Constituição”, não é mais a rendosa
prática de arroubos da campanha e da primeira fase do mandato. É a desordem em
marcha. Se chegar ao golpe, não faz diferença se pleno ou parcial, será porque
teve permissão. A começar do consentimento da Câmara e do Senado para a criação
do crime fartamente anunciado pelo próprio Bolsonaro.
De Justiça
Fique claro: foi do
Supremo, por pressão da maioria dos seus ministros, e não de Luiz Fux, a forte
nota de reação a Bolsonaro. Enquanto, quatro dias antes, o Tribunal Superior
Eleitoral retomava as sessões com verdadeiras medidas de defesa da
Constituição, Fux, no Supremo, fazia discurso reinaugural falando em diálogo e
harmonia. Ao que Bolsonaro respondeu com agressões redobradas.
Fique claro: sem desmerecer as atitudes dos ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, ilustradas por texto admirável, a primeira reação efetiva a Bolsonaro foi do ministro Luis Felipe Salomão, corregedor-geral eleitoral: os 15 dias que deu a Bolsonaro para comprovar as acusações de fraude nas urnas eletrônicas. Bolsonaro teve que reconhecer as mentiras ditas desde a campanha.
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