O Globo
O embate em processo entre o presidente
Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF) é o caso exemplar de um fato
histórico que aconteceu no Brasil como tragédia, e hoje se repete como farsa,
para confirmar a frase famosa de Karl Marx. No dia 16 de janeiro de 1969, em
decorrência do AI-5 assinado em dezembro de 1968, foram aposentados
compulsoriamente os Ministros Victor Nunes Leal, vice-presidente do
Supremo Tribunal Federal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Em solidariedade aos cassados, renunciaram em seguida o então Presidente,
Ministro Gonçalves de Oliveira, e o decano da Corte, Ministro Lafayette de
Andrade. Em outubro de 1965, o governo, através do AI-2, ampliara de 11 para 16
os ministros do Supremo. Após as cassações, com a nomeação de mais cinco
ministros, o governo militar, garantida a maioria, fez retornar o formato
original de 11 ministros, que persiste até hoje.
Aqui entre nós, na atualidade, a tentativa de Bolsonaro e seus militantes de
emparedar o STF está encontrando resistências democráticas vigorosas. O
advogado Flavio Carvalho Brito, que trabalhou com Victor Nunes Leal e herdou
seu espólio profissional, descobriu recentemente uma carta em que, no dia 16 de
junho de 1964, pouco mais de dois meses depois do golpe militar, o
então ministro escreve a um amigo de nome Mario, não identificado, dizendo que
o preocupou a “notícia, que você me deu, de haverem falado ao Marechal Castelo
Branco de um pretenso trabalho de três ministros do Supremo
Tribunal - entre os quais eu - no sentido de aqui se formar um bloco hostil ao
governo. (...)”.
Quatro anos e sete meses depois, a cassação dos membros do Supremo mostrou que
a preocupação de Victor Nunes não era vã. O que se segue é exemplar do seu
espírito democrático, e uma lição para os dias de hoje: “Quem chega ao Supremo
Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no
magistério, em funções administrativas e políticas, e está atento ao julgamento
dos seus contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente no Supremo Tribunal,
não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige
espírito público e dignidade. (...)
“Não é de se estranhar, pela incompreensão da política, que homens com esse tirocínio sejam julgados com parcialidade, porque ao longo de sua carreira , nem sempre tranquila, tiveram que contrariar interesses ou viver situações e problemas polêmicos. (...) Enquanto os outros poderes fazem as leis, imprimindo frequentemente novo rumo à coisa pública, o dever do juiz é cumpri-las, em confronto com a Constituição.
“De certo, essa delicada tarefa não é um trabalho mecânico. Valemo-nos de nossa formação profissional e da observação da realidade econômica, social e política. Mas, nessa busca, por vezes tormentosa, nossa lealdade é para com a Constituição, as leis, e o interesse coletivo, e a uma consciência, porque , sem a independência, que é ônus e prerrogativa do juiz, não se pode falar em autêntico poder judiciário. (...)
“Cada um de nós é cioso da sua responsabilidade pessoal, da sua reputação, do seu compromisso com o país, da sua autonomia de julgamento. Quando rumores de todos os lados inquietavam nosso espírito e nos perturbavam o trabalho, era natural que nos preocupássemos o destino de nossa instituição, que é fiel do equilíbrio federativo, da harmonia dos poderes, dos direitos individuais, e, portanto, chave do regime democrático-representativo em que vivemos. (...)
“Assumir posições políticas, num ou noutro sentido, seria totalmente contrário à missão constitucional do Tribunal, prestigiado por sensível tradição constitucional, que todos estamos empenhados em preservar”.
O constitucionalista Gustavo Binemboin, que me deu acesso à carta, diz que a razão principal para considerar que a repetição não se dará “nem como farsa”, é o surgimento de uma “consciência democrática, um genuíno sentimento constitucional, que impõe aos governantes os respeito às instituições republicanas. Não há maioria que apoie uma ruptura do Estado de direito e da continuidade da vida democrática. Criticar a democracia para aprimora-la, mas sem destruí-la”. (No blog o fac-símile da carta).
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