O Globo
Neste momento em que a confusão política é
menos intensa, observo que, nos grupos que sigo nas redes sociais, há um sério
debate sobre o futuro do país. Sinto não participar ativamente por falta de
tempo e, às vezes, boa conexão.
Não tem mais validade aquele verso de
Drummond: “Ao telefone perdeste muito tempo de semear”. As pessoas estão
semeando ideias, e espero que um dia sejam levadas à prática, embora a mediação
do mundo político real tenda a neutralizá-las.
De minha parte, se pudesse contribuir
agora, tentaria levar mais diretamente ao mundo político a ideia de uma
emergência ambiental. Não há trégua nesse campo. Bolsonaro pode, apesar da
relutância, aceitar a vacinação, atenuar suas frases no cercadinho, esquecer,
momentaneamente, o voto impresso. Mas seu projeto de devastação dos recursos
naturais é diuturno, não para nos feriados, nem com bloqueio de caminhoneiros.
Na sua cabeça, não é uma política destrutiva. Pensa na riqueza material, num conceito de progresso. Possivelmente, assim pensava a elite capixaba quando arrasou a Mata Atlântica, processo magistralmente descrito por Warren Dean no livro “A ferro e fogo — A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira”.
Agora, as cidades do Oeste de Santa
Catarina decretaram emergência por causa da seca, o reservatório de Ilha
Solteira, em São Paulo, está no nível mínimo, e a Chapada dos Veadeiros arde em
Goiás.
Não se trata de abordar a emergência apenas
pelo ângulo planetário com base nos dramáticos relatórios da ONU. É possível
partir daqui de dentro para o mundo. O Brasil está secando, perdermos 15,8% de
nossa água doce em três décadas. Os incêndios no Pantanal mataram 17 milhões de
animais.
E essa matança pelo fogo se completa com as
balas. Como diz um morador da Serra da Bodoquena, agora que as armas são mais
acessíveis:
— Morrem onças porque comem o gado;
queixadas e catetos, porque comem o milho; antas e pacas, porque a carne é boa.
No momento em que acabo de concluir uma
série de programas para uma temporada, sinto-me atraído pela possibilidade de
documentar a crise hídrica, que considero histórica. Não no sentido comum, pela
simples comparação de níveis dos rios e reservatórios e intensidade de chuva,
uma espécie de variação dentro de um fenômeno regular.
Considero a crise histórica porque
representa um momento de inflexão. Nunca mais seremos o país com riqueza de
matas e abundância de água como costumamos nos imaginar. Todos os grandes
biomas brasileiros estão sob ataque.
Não tenho outro caminho, exceto documentar
essa perda. Nem há exílio possível. Conheci as asperezas do exílio, estudei o
tema mais amplamente no livro de Maria José de Queiroz “Os males da ausência —
Ou a literatura do exílio”. Pessoalmente, encontrei exilados que eram órfãos de
um Estado, como os palestinos, os eritreus.
Mas é difícil imaginar o exílio de um país
que deixou de existir, não como unidade política, mas como entidade física, sem
a beleza e a exuberância que não só encantam o mundo, mas nos ligam a ele.
Ainda haveria tempo de buscar o
desmatamento zero na Amazônia, de recuperar as principais bacias hidrográficas,
de estancar a matança no Pantanal, a destruição do Cerrado, a liquidação do que
restou da Mata Atlântica. Isso podia suscitar também uma grande cooperação
internacional.
Mas o que predomina hoje no governo e,
infelizmente, entre os militares, é uma certa noção de progresso e uma grande
desconfiança em relação ao mundo. O Brasil vai se tornar um espelho de seu
universo mental.
Pelo menos, é possível documentar a
tragédia, à espera de uma tomada de consciência, algo que os eventos extremos
já estão provocando no mundo.
A emergência ambiental figura no topo da
agenda de alguns líderes mundiais. A preservação da Amazônia é uma aspiração da
maioria do nosso povo. Vamos esperar que, por algum milagre, isso seja um tema
nas eleições de 2022 e que funcione como mais uma pedra no sapato de Bolsonaro.
O Brasil pode se tornar a imagem da extrema
direita, mas será tão árida quanto a alma dessa corrente política.
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