Folha de S. Paulo
E se não tivesse havido a
pandemia nem o legado do clã presidencial com a justiça?
O que teria acontecido com Bolsonaro na
ausência da pandemia e dos problemas judiciais do clã presidencial? Os efeitos
são distintos, mas estão interligados. A crise sanitária representou, sim, um
choque exógeno no sistema político, enquanto o legado de problemas da justiça
estava escrito em pedra, embora marcado por incerteza e baixa visibilidade
nacional.
A pandemia criou uma janela de atenção sobre o comportamento do presidente,
revelando à nação, atônita, um presidente sem qualquer empatia ou liderança em
uma calamidade social inédita. No curto prazo, Bolsonaro nem sequer usufruiu da
onda de solidariedade aos governantes que a pandemia deflagrou na
vasta maioria dos países.
A estratégia de jogar a culpa nos
governadores e prefeitos malogrou. Bolsonaro tampouco ganhou o crédito pela vacinação célere
que acabou acontecendo. A segunda onda teve impacto virulento, derrubando sua
popularidade, mas o problema agora é menos sanitário que econômico.
A janela de atenção prolongou-se no tempo devido à CPI, que a magnificou, e
reintroduziu o tema da corrupção na agenda.
Embora a pandemia tenha levado o auxílio emergencial aos grotões,
reconfigurando a base social de apoio do presidente, o saldo político é
francamente negativo. A expansão brutal do gasto encolheu o espaço fiscal, e a
estagflação resultante —que não é um fenômeno brasileiro e aflige muitos
países— combina-se agora com a crise energética em uma tempestade perfeita.
Em suma, na ausência da pandemia, Bolsonaro provavelmente teria navegado sem
muita turbulência.
O exercício contrafactual pode estender-se
também aos problemas do clã familiar com a justiça. Sem eles, não teria
ocorrido o colapso da coalizão com os setores que apoiaram a Lava Jato, a saída
de Moro, e o rapprochement com o centrão para a formação de um escudo
legislativo. Enfim as placas tectônicas das relações
Executivo-Legislativo não teriam se movido.
A escalada do conflito com o STF neste quadro representa menos um ataque à
democracia por parte de um autocrata do que demonstração de força visando a
sobrevivência do clã familiar. Mas Bolsonaro dá sinais de virar um pato manco:
o conflito ameaça a aliança com o centrão na esteira de um possível efeito
manada.
Sem os problemas na justiça, a principal tensão seria a convivência da Lava
Jato com o centrão. A formação de uma base congressual visaria apenas a
aprovação da agenda de governo —de menor importância dada a convergência
programática em torno de reformas — e não um escudo legislativo.
A pandemia iluminou as ações do presidente no presente. O legado de malfeitos
revelou o presidente no passado. A combinação foi explosiva.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Nenhum comentário:
Postar um comentário