Valor Econômico
Influência política sobre regulação afeta
leilão do 5G
Na contracapa do quarto álbum lançado pelos
Beatles, o assessor de imprensa da banda, Derek Taylor, apresentou o disco da
seguinte maneira: “Quando, daqui a 20 anos ou mais, uma criança, entendida em
música, estiver num piquenique em Saturno, e lhe perguntar quem eram os Beatles
(...), não tente explicar tudo sobre os cabeludos e sua turbulência! Basta à
criança tocar algumas faixas deste LP e ela logo entenderá tudo”.
Beatles for Sale foi lançado
em dezembro de 1964 e se por um lado o jornalista estava correto em antever que
a magia dos quatro garotos de Liverpool não sofreria limites de tempo ou
espaço, sua previsão quanto ao prazo para a massificação das viagens
interplanetárias mostrou-se um imenso fracasso.
Quase sessenta anos depois, a perspectiva de chegada do 5G renova as esperanças de que, num futuro breve, conviveremos com carros autônomos circulando pelas ruas, eletrodomésticos que se comunicam com sites de e-commerce, drones fazendo entregas e robôs assumindo boa parte do trabalho humano na nova indústria 4.0.
Se o avanço da tecnologia nos permite
sonhar viver na Orbit City de George Jetson, a observação do processo de
concepção da licitação do 5G no Brasil lembra mais a Bedrock de Fred Flintstone
- dois desenhos animados de sucesso também lançados no início dos anos 1960.
Com a exaustão do modelo de desenvolvimento
que imperou no país da era Vargas ao fim do regime militar, a Constituição de
1988 determinou que o Estado deveria deixar de ser provedor de bens e serviços,
por meio das estatais, e assumiria o papel de agente normativo e regulador da
atividade econômica.
Apesar de tímidas iniciativas nos governos
Sarney, Collor e Itamar, o verdadeiro impulso para se dar concretude a esse
novo modelo econômico só veio no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
O Programa Nacional de Desestatização (PND), acompanhado das reformas
constitucionais e infraconstitucionais que reconfiguraram os setores básicos e
de infraestrutura no país, é um dos mais importantes legados do Plano Real,
embora frequentemente esquecido pelas análises que se concentram somente na sua
engenhosidade macroeconômica.
De forma resumida, o objetivo era
modernizar a regulamentação dos setores de infraestrutura, privatizar as
empresas estatais para atrair capitais privados nacionais e estrangeiros e
delegar a regulação e a fiscalização das novas empresas para agências com
autonomia operacional, blindadas da influência política.
A Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel) foi a primeira agência reguladora brasileira, criada em 1997. Seus
conselheiros foram protegidos com mandatos fixos de cinco anos, garantiu-se
autonomia orçamentária para o órgão e criou-se uma estrutura de pessoal técnico
bem selecionada e remunerada.
A independência formal, porém, não foi
suficiente para proteger as decisões da Anatel de interferências econômicas e
políticas. No princípio, o pêndulo tendeu para a captura dos seus dirigentes
pelos interesses das empresas de telecomunicações. Com o passar do tempo,
contudo, o poder da agência começou a ser esvaziado pela classe política, seja
pela hipertrofia das atribuições do Ministério das Comunicações - a quem a
Anatel permanece vinculada -, seja na escolha dos conselheiros, que passaram a
ser apadrinhados pelos grandes caciques do Congresso Nacional.
Acontece que o poder não admite vácuo. Numa
entrevista recente para o excelente podcast “A Arte da Política Econômica”, do
Instituto Casa das Garças, a economista Elena Landau (diretora de privatização
do BNDES à época da reconfiguração do mercado de telecomunicações brasileiro)
argumenta que o espaço aberto com o enfraquecimento das agências reguladoras
foi ocupado pelo Tribunal de Contas da União e pelo Poder Judiciário.
Esse jogo de forças tem uma consequência
clara: a regulação dos setores de infraestrutura no Brasil deixou de ser guiada
por princípios técnicos e passou a ser controlada pela política.
Entre os dias 02 e 12 de fevereiro deste
ano, uma comitiva comandada pelo ministro das Comunicações, Fábio Farias,
visitou Suécia, Finlândia, Coreia do Sul, Japão e China para se encontrar com
autoridades governamentais e executivos de empresas fabricantes de redes e
equipamentos de 5G (Ericsson, Nokia, Samsung, Fujitsu, Nec e Huawei). Além de
representantes de diversas áreas do Poder Executivo, a viagem contou com a
presença dos ministros Bruno Dantas, Vital do Rêgo e Walton Alencar, todos do
Tribunal de Contas da União (TCU) - órgão que deveria analisar o edital de
licitação das frequências para o 5G.
Na semana passada, o Conselho Diretor da
Anatel se reuniu para acertar os últimos detalhes do leilão do espectro de
frequências. A pressão do ministro das Comunicações sobre os diretores foi tão
grande que o conselheiro Emmanoel Campelo teve que desligar o celular para
conseguir analisar o caso em paz.
As situações prosaicas relatadas acima são
sintomas de um longo processo em que a bilionária concessão de faixas do 5G vem
sendo utilizada para atender interesses do governo e de bancadas do Congresso
Nacional. Desrespeitando as recomendações do corpo técnico tanto do TCU quanto
da Anatel, os ministros e conselheiros de ambos os órgãos têm cedido para
acomodar preferências de nossa elite política.
A licitação do 5G já foi alterada para se
exigir, como contrapartida, a construção de uma rede privativa paralela a fim
de acomodar os temores de Bolsonaro e seu entorno quanto a supostas espionagens
chinesas. O TCU também exigiu que o edital fosse modificado para se garantir a
construção de uma rede subfluvial na Amazônia e o atendimento de escolas rurais
- objetivos louváveis de política pública, mas que deveriam ser objeto de
estudo de impacto no âmbito da discussão orçamentária.
Ao admitir que a regulação da
infraestrutura brasileira sofra a interferência das conexões políticas, não
será surpresa se o 5G brasileiro nasça mais caro e com pior qualidade do que no
restante do mundo - como, aliás, tem sido a marca de nosso sistema de
telecomunicações há anos.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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