Falou e Disse
“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se
descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles
lutam”. (Paulo Freire in Pedagogia do Oprimido)
Iniciei a minha vida profissional e
política muito cedo, e por isso tive a imensa satisfação de conviver e trabalhar,
ao chegar em Pernambuco, com algumas pessoas que muito labutaram na
construção da nossa ainda frágil democracia, a exemplo de Paulo Cavalcanti,
Miguel Arraes, Paulo Freire e outros, com os quais aprendi que a democracia é um
bem inalienável.
Com Paulo Cavalcanti estabeleci uma grande
amizade através da vida partidária e da continuidade das conversas nos finais
das tardes de domingo em sua casa, lá no bairro de Cajueiro, Recife, onde minha
filha ainda pequena se divertia com a presença dos gatos no gramado dos
jardins.
Com Miguel Arraes trabalhei durante três
anos, após a sua chegada do exílio, em 1979, ele cheio de vontade de fazer
deste Brasil uma grande nação, e eu saindo de um mestrado em sociologia, cheia
de ideias sobre como transformar a sociedade num ambiente pleno de direitos.
Trabalhamos muito para isso, mas essa história ainda vou contar.
Encontrei Paulo Freire pessoalmente quando
eu assumia a função de secretária de Educação do município do Cabo de Santo
Agostinho (PE). Era o ano de 1986 e o prefeito, um jovem democrata, Elias
Gomes.
No entanto o meu contato primeiro com o escritor Paulo Freire foi ainda no Ceará, meu Estado, através do seu livro Extensão ou Comunicação, da editora Paz e Terra. O livro foi escrito no Chile, em 1968, e publicado em 1969. À época eu trabalhava como extensionista rural, num programa desenvolvido com famílias que produziam alimentos através da agricultura familiar, patrocinado pelo governo da ditadura militar.
Freire, ao escrever o livro, fazia uma
crítica ao processo desenvolvido pelos serviços de extensão, nos mostrando que
a técnica apresentada aos agricultores, somente, não contribuía para que as
pessoas que viviam e trabalhavam no campo, tivessem o conhecimento sobre os
problemas gerados pela sociedade agrária existente no país, pois carecia que
lhes apresentássemos os instrumentos para análise da sua própria existência
Acontecia também que os agricultores não
eram considerados ou reconhecidos como pessoas donas de saberes adquiridos pela
prática de vida e trabalho, na convivência com seus ancestrais.
Atualmente sabemos que mais de 75% da
alimentação do povo brasileiro ainda vêm da agricultura familiar, que embora
não receba a devida atenção e apoio, pois geralmente os pequenos agricultores
são forçados a vender suas terras, e, cercados que são pelos grandes
produtores, muitos acabam indo para a cidade grande, ocorrendo o conhecido
êxodo rural.
O livro despertou em todos que acreditavam
no poder da agricultura familiar e sua importância para a alimentação da
população, bem como na necessidade da reforma agrária, o sentimento de que era
necessário percorrer os caminhos da liberdade, através do processo educacional,
não só nas escolas, mas em todas as ações que envolvem processos de
aprendizagem.
Paulo Freire sedimentou em
todos nós a compreensão de que o processo de aprendizagem é permanente e
inerente ao ser humano.
A sua experiência em Angicos, no Rio Grande
do Norte, nos colocou de frente com a possibilidade de se erradicar o
analfabetismo no Brasil e avançar nas reformas planejadas pelo governo João
Goulart. Os militares não gostaram.
No exílio, também no Chile, escreveu o seu
livro, Pedagogia do Oprimido,
que se tornou uma grande referência para aqueles que lutavam contra a ditadura.
Aos poucos foi se transformando numa referência mundial. Nas universidades
brasileiras, escondidos dos militares, líamos o livro em pequenos capítulos
traduzidos para o português e conseguido de forma clandestina.
Publicado em 1968, no Chile, sendo que uma
edição portuguesa saiu em 1974, o livro Pedagogia
do Oprimido, trata sobretudo da relação entre colonizadores e
colonizados, oferecendo uma ampla reflexão sobre as relações de subordinação
existentes na sociedade, “propondo uma pedagogia com uma nova forma de
relacionamento entre professor, estudante e sociedade”. Continua sendo lido por
educadores do mundo inteiro e um dos fundamentos da pedagogia crítica, com base
no diálogo e na análise do cotidiano em que vivem os educandos.
Em 1988 foi criado no Cabo de Santo
Agostinho o Projeto Escola da vida, com o objetivo de erradicar o analfabetismo
e avançar na qualidade do ensino, com a participação da sociedade. Para nosso
orgulho, o principal colaborador foi Paulo Freire, e o encontro com a nossa
equipe do município foi mediado pela professora Adozinda, que já havia com ele
trabalhado antes do exílio, no Movimento de Cultura Popular (MCP), e nos
ajudava na nossa jornada por melhor educação, junto à secretaria de Educação,
na formação dos professores.
Além do aprendizado coletivo, pudemos
privar da convivência com o estudioso, pensador, humanista e bom mesmo era
poder lhe escutar falar sobre suas experiências mundo afora e poder saborear o
prazer de aprender cada vez mais, na prática, dialogando, ouvindo pausadamente,
avaliando circunstâncias de trabalho, vida e compromisso.
Com Paulo Freire, sentados numa sala em
círculo, todos éramos iguais, detentores de diferentes saberes que podiam ser
compartilhados. Ali estávamos, prefeito, secretários municipais, professores,
lideranças comunitárias, todos em busca da construção do conhecimento que nos
proporcionasse desenvolver o município para o bem estar do seu povo.
Foram muitas rodadas de estudo e também
muitas conversas à beira-mar de Gaibu, tendo como aperitivo predileto uma boa
cachaça.
Para nós, Paulo Freire era o nosso amigo, o
que ajuda lutar e vencer.
A lembrança de Paulo Freire está presente
em todos nós que participamos desta empreitada, pelo que com ele aprendemos,
pela nossa unidade na ação e pelo que permanece até hoje na memória da
população do município do Cabo de Santo Agostinho.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
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