segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Antônio Gois - Freire merecia tempos melhores em seu centenário

O Globo

Era uma vez um país em que o ensino público era de qualidade. Crianças iam para a escola para aprender e saíam de lá plenamente alfabetizadas. Havia disciplina, rigor e respeito à autoridade do professor. Mas daí vieram Paulo Freire e seus seguidores e arruinaram tudo, levando à situação em que hoje nos encontramos.

O parágrafo acima é obviamente uma caricatura, mas é triste constatar que não difere muito do típico pensamento da extrema-direita que chegou ao poder no Brasil. Basta lembrar de algumas declarações recentes de Bolsonaro, como a de que “o PT, via método Paulo Freire, nos colocou em último lugar do Pisa” ou que os resultados do Brasil no exame da OCDE são um “sinal de que a política do Paulo Freire não deu certo”.

Antes de falar de Freire, é importante desmentir a falsa tese do passado glorioso da educação brasileira. Na década de 30, como demonstrado pelos trabalhos de Teixeira de Freitas a partir das estatísticas de época, mais da metade das crianças que se matriculavam no primeiro ano do antigo ensino primário (hoje ensino fundamental) eram reprovadas e não avançavam à série seguinte.

É a partir da década de 60 que Freire começaria a se tornar conhecido no Brasil. Mas, antes de suas ideias terem alguma influência nos corações e mentes de professores, o quadro geral do ensino continuava trágico. Otaíza de Oliveira Romanelli, no livro História da Educação no Brasil, mostra que de cada 1.000 alunos que frequentavam o primeiro ano do primário em 1961, apenas 446 sobreviviam ao segundo ano, e somente 64 chegariam em 1972 ao equivalente na época ao atual ensino médio.

Veio a Ditadura Militar, Paulo Freire foi exilado, e o que aconteceu com o ensino ao final da década de 80? As matrículas continuaram se expandindo, mas a reprovação seguia sendo a regra para mais da metade das crianças na primeira série, conforme comprovam os trabalhos de Sérgio Costa Ribeiro, Ruben Klein e Phillip Fletcher. Para a maioria da população, portanto, a escola brasileira foi, durante praticamente todo o século passado, uma grande máquina de exclusão em massa.

Se houvesse um exame como o Pisa em qualquer período do século XX, não há dúvida de que ficaríamos em situação vexatória caso a totalidade de nossa população em idade escolar fosse comparada com a de nações desenvolvidas, ou mesmo frente a vizinhos como Chile, Uruguai ou Argentina. Nunca tivemos um sistema educacional de qualidade para todos. Nem antes, nem depois de Paulo Freire.

Mostrar como é tosco o argumento que coloca em Freire a culpa pelo atual quadro da educação brasileira não significa que sua obra tenha que ser colocada num pedestal. Como já escrevi aqui, seus textos obviamente não precisam ser lidos como um conjunto de verdades incontestáveis. Mas um educador de inegável relevância e influência mundial merecia, em seu centenário, que seu legado fosse debatido no Brasil em tempos de menos intolerância, ignorância e estupidez.

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