Valor Econômico
Enquanto dono da Havan explora revolta
contra poder do Estado na pandemia, Bolsonaro cuida de manter o espetáculo na
outra ponta com carimbo sobre wi-fi e microcrédito
O depoimento do dono das lojas Havan à CPI
da Covid no Senado mostrou que a oposição ainda está despreparada para
enfrentar o bolsonarismo na sucessão presidencial de 2022. Levou quatro horas
para Luciano Hang começar a falar o que, de fato, importava para sua vinculação
com o gabinete paralelo da pandemia e o financiamento das “fake news”.
Até lá, Hang teve palco para se apresentar
como representante daquela fatia do eleitorado que está mais fechada com o
presidente Jair Bolsonaro. Até vídeo-propaganda de sua empresa teve
oportunidade de exibir. O Datafolha chama de empresários e o Atlas de
empreendedores, mas os dois institutos convergem na constatação de que este é o
segmento em que o presidente colhe seu melhor desempenho, com 48% de aprovação.
Entre eles não se incluem grandes empresários e banqueiros que se mobilizam por uma terceira via, mas donos de restaurantes e botecos, feirantes, cabeleireiras e empreendedores de toda ordem que se multiplicaram com a epidemia do desemprego. Eles se identificam com Bolsonaro porque seu negócio faliu ou foi severamente afetado pelas medidas de restrição adotadas por governadores e prefeitos.
Não são adoradores do presidente, mas é ele
quem encarna hoje a rejeição ao Estado interventor, esse Leviatã que trancou as
pessoas em casa, obrigou o uso de máscaras e multou estabelecimentos que
desafiassem horários restritos de funcionamento. Esta mentalidade que remete ao
monstro bíblico ao qual foi equiparado o Estado absolutista, foi vitaminada
pela pandemia. Não se trata de um fenômeno tupiniquim. Acomete negacionistas no
mundo inteiro e tem, no Brasil, um lídimo representante em Luciano Hang.
Até a CPI entrar no que realmente importa
para vinculá-lo aos crimes da pandemia, o dono da Havan teve a oportunidade de
buscar empatia com a plateia ao longo da sessão da CPI. Filho de operários,
teve dislexia na infância e vendia biscoitos na escola. Foi operário até se
arriscar como comerciante com uma pequena loja de tecidos.
Nega ser empresário, como o faria qualquer
dono de bodega. Fala de si como comerciante, apesar de ter um conglomerado de
164 lojas em 20 Estados. Para todo pecado levantado pela CPI, apresentava uma
história capaz de comover seus pares. Contas bancárias e offshores no exterior?
Claro, como poderia importar sem uma empresa lá fora para amortizar a flutuação
do câmbio? Empréstimos de R$ 27 milhões no BNDES? Sim, mas não porque
precisasse. Fatura mais do que isso por dia. Passou a vender cestas básicas
para se enquadrar no critério de atividade essencial? Sim, mas se pode vender
chocolate por que não feijão e arroz?
É claro que foi contraditado pelos
senadores. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), lembrou que enquanto dona
Maria não consegue R$ 1 mil de crédito para comprar uma máquina de costura, o
empresário que se veste de verde-amarelo para se fingir de patriota pegou
dinheiro que não precisa. O relator, Renan Calheiros (MDB-AL) tirou dele que os
sites para onde destina R$ 150 milhões por ano em publicidade são escolhidos a
dedo e mostrou vídeo em que Hang, ao contrário do que dissera, coagiu
funcionários a votar em Bolsonaro em 2018.
Hang quis desenhar para os senadores a
diferença entre tratamento preventivo e inicial com o kit covid quando, na
verdade, nenhum dos dois funciona. Preparou, como clímax do depoimento, a
imagem de filho zeloso que ganhara dinheiro para que os pais tivessem a vida
digna que foi negada aos avós. Por isso, autorizou até kit-covid para salvar a
mãe, mas foi obrigado a reconhecer a omissão da causa de sua morte no atestado
de óbito.
Os senadores da oposição concluíram sua
intervenção constatando a utilidade do depoimento. Será? O que o empresário
disse naquela comissão que já não fosse do conhecimento do inquérito das “fake
news” no Supremo Tribunal Federal ou da própria CPI? Há informações que
ajudarão a compor o relatório, como o do encontro entre Hang e o líder do
governo, Ricardo Barros (PP-PR), horas antes da sessão. A dúvida que se coloca
é a do custo-benefício do depoimento.
Os próprios senadores alertaram que uma
rede de robôs havia entrado em ação para atacar seus perfis sociais durante a
sessão. O filho do presidente, senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), que
estava sumido da CPI, reapareceu com o claro intuito de provocar os colegas.
Foi, em parte, bem sucedido, como mostraram as mãos trêmulas do senador Rogério
Carvalho (PT-SE) quando exigiu que o advogado do depoente deixasse a sala por
desacato.
As imagens do depoimento já foram
devidamente editadas e caíram na rede para mostrar uma goleada de Hang, a
começar pela transmissão ao vivo em rede social dos próprios deputados da tropa
de choque bolsonarista, como Daniel Freitas (PSL-SC) e Bia Kicis (PSL-DF), lá
presentes.
Não importa que esta goleada-fake se
destine a convertidos como aqueles que lotaram a avenida Paulista no 7 de
setembro. O presidente está dedicado à outra ponta do eleitorado. Não apenas
com um auxílio emergencial vitaminado mas também com o carimbo que busca
imprimir ao programa “Wi-fi para todos”, versão bolsonarista do petista “Luz
para todos”, e, mais recentemente, com a investida para tomar o controle do
Centrão sobre o microcrédito do Banco do Nordeste do Brasil.
Enquanto Hang mantém o picadeiro do circo
armado, Bolsonaro cuida de garantir o sucesso de atrações como a da oposição ao
seu próprio governo. Deixou isso claro no dueto com o presidente da Petrobras,
Joaquim Luna e Silva, em torno do preço dos combustíveis. Um finge que bate
enquanto o outro se mantém irredutível contra o intrépido presidente em sua
luta contra a carestia.
Os espetáculos se sucedem enquanto
Bolsonaro cuida, na coxia, de esticar a corda com o Centrão, como no BNB, certo
de que três datas ainda terão que ser vencidas para que algum desembarque se
concretize: a votação do Orçamento de 2022 até 31 de dezembro, o empenho das
emendas parlamentares, em 2 de abril, e o encerramento de sua execução
financeira, em 2 de julho. É este o prazo que a oposição tem para aprender a
enfrentar o bolsonarismo sem dar palco para maluco.
Maria Cristina Fernandes
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