O Globo
Comer pedaço de pizza nas ruas de Nova York
pode ser um dos melhores programas da cidade, mas ficar na porta do restaurante
porque não pode entrar sem a comprovação da vacina contra a Covid-19 é um
vexame sem precedentes para um presidente de qualquer República que se preze.
Não é sinal de populismo, nem de ser popular, mas de desleixo com as vidas
alheias, que é a marca registrada de Bolsonaro.
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que foi seu companheiro de
negacionismo no início da pandemia, mas depois caiu na real, foi sutilmente
irônico com Bolsonaro. Fez a apologia da vacina AstraZeneca, fruto de pesquisas
da Universidade de Oxford, e incentivou todos a se vacinar. Embora certamente
já soubesse, Boris Johnson perguntou a Bolsonaro se ele já havia se vacinado,
ao que o presidente brasileiro respondeu com um sorriso sem graça: “Ainda não”.
Só num país dirigido por um desequilibrado seria possível ter acontecido a
abjeta experiência que resultou em 200 mortes entre 645 pacientes de Covid-19
que foram usados para uma pesquisa sobre os efeitos da proxalutamida
completamente fora de controle técnico, como acusa a Comissão de Ética em
Pesquisa.
O mesmo médico, o endocrinologista Flavio Cadegiani, que agora está sendo
acusado na Procuradoria-Geral da República (PGR) por ter ampliado sem consulta
a pesquisa inicialmente aprovada, foi o criador do sistema de tratamento usado
no aplicativo TrateCov, que o governo também usou em Manaus, no auge da crise
de falta de oxigênio. A CPI da Covid apresentará em seu relatório final provas
de que esse foi um “experimento pseudocientífico”, na expressão do jurista
Miguel Reale Júnior, orientado pelo Ministério da Saúde.
O que esperar de um governo cujo presidente se vangloria de não se ter
vacinado? O vexame internacional em que está se configurando mais essa viagem
de Bolsonaro ontem teve um toque tupiniquim de burla das normas sanitárias de
Nova York com a churrascaria brasileira Fogo do Chão dando demonstração de que
o famoso “jeitinho brasileiro” pode sempre ser usado para mau exemplo.
A churrascaria fez um puxadinho na calçada, improvisou uma barreira para que
Bolsonaro e seus convivas não fossem perturbados e serviu um churrasco bem
brasileiro ao presidente, que não podia entrar no restaurante sem o passe
sanitário. Para completar, o lutador Renzo Gracie acompanhou a comitiva
brasileira na caminhada de volta até o hotel, para evitar qualquer incômodo ao
presidente. O que não impediu que uma brasileira o saudasse com gritos de
“genocida”.
Nova York, governada pelo liberal — que significa esquerdista nos Estados
Unidos — Bill de Blasio, já havia atrapalhado a entrega do prêmio Homem do Ano
a Bolsonaro, pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. A cerimônia seria
no Museu de História Natural, mas o prefeito insinuou que não gostaria de ver
aquele “homem perigoso” ser homenageado numa instituição que recebia verba
pública, e Bolsonaro teve de receber a homenagem na Flórida.
Agora, mandou um recado ao presidente do Brasil: se não se vacinou, não precisa
nem vir à cidade. Sorte de Bolsonaro que a sede da Organização das Nações
Unidas (ONU) é território internacional dentro de Nova York e, assim como Fidel
Castro não podia entrar no país, mas podia discursar na ONU, também Bolsonaro
não precisou se vacinar para fazer seu discurso hoje, na abertura da sessão
anual, como é tradição devido a Oswaldo Aranha.
Bolsonaro disse que seu discurso será em braile. Imagino que tenha usado a
metáfora para ironizar aqueles que não querem ver as maravilhas que vem fazendo
no Brasil. O mundo será, então, inundado de fake news.
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