Valor Econômico
Só um político habilidoso e com trânsito no
Congresso será capaz de liderar o programa de reformas no próximo mandato
presidencial
Em um momento quase cômico, na semana
passada, o ministro Paulo Guedes fez “um pedido desesperado de socorro” ao
Judiciário e ao Legislativo para resolver o impasse do Orçamento de 2022. Ele
se referia ao já enfadonho problema dos precatórios, que surpreendeu o governo
com uma conta a pagar de R$ 89,1 bilhões em 2022, e não de R$ 54 bilhões como
previa o Ministério da Economia.
O socorro solicitado, portanto, seria de R$
35,1 bilhões, valor que Guedes tenta parcelar ou adiar com auxílio do Congresso
e do Judiciário.
O pedido de Guedes virou uma fábrica de
memes porque a conversa se deu em um encontro aberto no qual participava, além
do ministro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. Bem-humorado,
Fux defendeu o diálogo entre as instituições e disse: [Guedes] é “tão amigo que
coloca no meu colo um filho que não é meu”.
Guedes em geral fala, por impulso, o que lhe vem à cabeça. Mas nessa vez pode ter se inspirado em uma marcante passagem do primeiro volume de memórias do ex-presidente dos EUA Barack Obama: “Uma Terra Prometida”.
Vale contar para quem não leu e relembrar
para quem leu os detalhes de uma dramática reunião na Casa Branca, narrados por
Obama, durante a campanha eleitoral de 2008, em plena crise financeira
americana.
George W. Bush, então presidente dos EUA,
chamou para a reunião seus assessores econômicos, líderes do Congresso e os
dois candidatos à Presidência, o democrata Obama e o republicano John McCain.
O banco Lehman Brothers, avaliado em US$
639 bilhões, havia anunciado, no fatídico 15 de setembro, que entraria com
pedido de falência. O mundo desabava diante do avanço daquela que viria a ser a
maior crise econômica desde 1929.
A reunião na Casa Branca era para tentar
convencer os líderes políticos de que havia urgência na aprovação do Programa
de Socorro a Ativos Depreciados (Tarp, na sigla em inglês), criando um fundo de
emergência de US$ 700 bilhões. Esse seria o preço a ser pago para evitar o
apocalipse na economia global. O Tesouro dos EUA seria autorizado a usar esses
recursos para comprar ativos desvalorizados e reanimar a economia.
Bush não tinha chance de aprovar o projeto
no Legislativo, porque havia muito mais resistências no Partido Republicano, do
governo, do que no Democrata, de oposição.
Durante a reunião, os ânimos se exaltaram.
Quando todos começaram a falar ao mesmo tempo, Bush se levantou: “Está na cara
que perdi o controle desta reunião, vamos encerrar por aqui”. E saiu da sala.
O clima era de velório. Enquanto os
republicanos deixavam a Casa Branca, Obama chamou Nancy Pelosi, presidente da
Câmara, e outros democratas para uma conversa. A ideia era tentar reduzir o
impacto negativo da divulgação dos detalhes da catastrófica reunião. Entrou na
sala também o secretário do Tesouro, Henry Paulson. Deu-se, então, a cena
marcante. Com seus 2 metros de altura e 62 anos de idade, relata Obama, Paulson
se apoiou sobre um dos joelhos diante de Nancy e disse: “Estou suplicando. Não
ponha tudo a perder”. Nancy sorriu, disse que não sabia ser ele católico e
replicou: “Você deve ter notado que não somos nós [democratas] que estamos
tentando pôr tudo a perder”.
Nancy tinha razão. Em 29 de setembro, a
Câmara rejeitou o projeto que criava o Tarp por uma diferença de 13 votos. Dois
terços dos democratas votaram a favor, e dois terços dos republicanos, contra.
O índice Dow Jones, da bolsa de Nova York, caiu 778 pontos e a repercussão na
imprensa foi devastadora. Isso levou muitos parlamentares a mudar de ideia e a
aprovar o projeto alguns dias depois, uma decisão essencial para a salvação do
sistema financeiro.
Guardadas as devidas proporções, o pedido
de socorro de Guedes e a súplica de Paulson são amostras de um mesmo problema:
o difícil relacionamento entre Executivo e Legislativo. Arrogâncias e
comportamentos inflexíveis normalmente têm péssimos resultados nas relações
entre poderes. Há momentos em que os ministros da Economia ou de qualquer outra
pasta precisam abandonar seu tom professoral e de infalibilidade e suplicar,
como Paulson, pela aprovação de medidas necessárias.
Vem aí uma nova campanha eleitoral para a
Presidência da República. Falar em reformas é cansativo. Desde 1963, quando
João Goulart propunha suas “reformas de base”, o assunto não sai da mídia. Mas
o país continua precisando de reformas. Seja quem for o eleito no ano que vem, elas
não avançarão se não houver diálogo entre poderes. O ex-presidente Lula já
avisou que, se for eleito, nomeará um político para o Ministério da Economia.
Nenhuma novidade: Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e político, foi ministro
da Fazenda e liderou o bem-sucedido Plano Real. Antonio Palocci, médico e
político, teve elogiado desempenho na Fazenda no primeiro mandato de Lula.
Só um político habilidoso e com trânsito no
Congresso será capaz de liderar o programa de reformas no próximo mandato
presidencial, ainda que não sejam tão amargas quanto as propostas pelo
neoliberalismo. As medidas não poderão estar alheias, por exemplo, às mudanças
no humor macroeconômico global. Não passarão no Congresso se mantiverem a
crença neoliberal que moldou a economia americana e europeia nos últimos 40
anos e sofre revisão geral.
Chamado de “fundamentalismo de mercado”
pelo economista turco Dani Rodrik em artigo no Valor de 11/9, a
política macroeconômica neoliberal desenhada no Consenso de Washington, em
1989, está sendo substituída por outras muito diferentes de rigidez fiscal,
estabilidade rigorosa de preços, culto à produtividade, baixos salários,
redução de poder de trabalhadores e sindicatos, desregulamentação, Estado
mínimo e apoio amplo às monopolistas empresas globais de tecnologia.
O mundo pós-pandemia vai ser diferente. Já
está sendo. O gesto de Guedes, ao pedir socorro para aprovar medidas e cumprir
o teto de gastos não merece crítica. Mas talvez fosse mais adaptada a esse novo
mundo a súplica pela substituição do teto de gastos por um instrumento menos
ortodoxo. O teto impede o governo de usar a política fiscal de maneira
contracíclica, que exige mais gastos públicos para suavizar crises, instrumento
banal em qualquer país, defendido por Paulson, de joelhos, em 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário