Folha de S. Paulo
Questionar eficácia dos imunizantes sem
crivo técnico é socialmente desastroso
A atitude cética é fundamental para o
avanço do conhecimento. Se estamos confortáveis com nossas crenças, o progresso
é impossível ou só virá depois que a realidade aplique golpes duros.
Grande parte da ciência é exatamente isso:
procurar problemas nas teses estabelecidas, extrair previsões delas para
falseá-las, identificar inconsistências, encontrar explicações que possam
reabilitar teorias já descartadas.
Uma possível
reação fatal a uma vacina, por exemplo, merece a atenção dos especialistas
e os debates que a cercam: será que a morte foi causada pela vacina? Será que a
vacina agravou um quadro preexistente que explica a morte? Qual a probabilidade
que devemos atribuir a essa possibilidade? Por mais sólido que seja nosso
conhecimento, a certeza nunca é absoluta.
No campo do conhecimento, colocar as próprias certezas em dúvida é sempre salutar. Na esfera prática, no entanto, é preciso agir. E essa ação se baseia em alguma crença, melhor ou pior embasada. Se, no momento da ação, a colocamos em dúvida, não iremos agir. Na esfera prática, o ceticismo é paralisante.
No debate público amplo, longe dos redutos
de especialistas, a discussão tem, via de regra, uma finalidade prática:
influenciar a conduta dos indivíduos, das organizações ou dos governos.
Qual é o valor, para o conhecimento humano,
de se enganar um leigo usando argumentos facilmente refutáveis por um
especialista, não raro com informações falsas, e persuadi-lo de que as vacinas
guardam efeitos colaterais perigosíssimos? Nenhum. Mas essa prática teve
impacto direto na condução de política pública: fez o governo tentar impedir a
vacinação de adolescentes.
A tática é manjada desde que a indústria do
cigarro se mobilizou para impedir restrições ao tabaco desde os anos 1950: se
for difícil defender o seu lado, basta semear a dúvida sobre o lado contrário.
Qualquer fiapo de possível evidência
contrária ao consenso científico serve, não para realmente mudar o estado da
questão junto aos especialistas, mas para confundir o grande público e
justificar que nada seja feito. Esse “ceticismo” seletivo é hoje empregado
pelos lobbies de diversas indústrias: para desacreditar o aquecimento global,
para combater restrições a pesticidas etc.
É o que vemos hoje com o movimento
antivacina por parte dos militantes bolsonaristas. Incapazes de realmente apresentar
dados contrários à vacinação, limitam-se a colocar em dúvida a política
nacional, tentando
reduzir ao máximo possível a confiança da população nos imunizantes,
agarrando-se a cada fato que possa enfraquecer a confiança popular, mesmo que
ele seja espúrio.
Teria sido a coisa mais fácil do mundo para
Bolsonaro —populisticamente— abraçar a vacinação desde o primeiro momento e se
vender como o Capitão Vacina. Não o fez. Pelo contrário, ele e seus
influenciadores continuam propagando desinformação.
Talvez o grau de loucura conspiratória de
seu eleitorado limite as ações possíveis do governo. Ele se queimaria junto a
seus eleitores se resolvesse defender enfaticamente a vacinação. Quem dera
tivessem demonstrado o mesmo “ceticismo”
com a cloroquina.
Num ambiente acadêmico, questionar a
eficácia e os riscos da vacina é bem-vindo, mesmo que esse questionamento acabe
sendo, ele próprio, rebatido. Fazê-lo diretamente junto à opinião pública, sem
passar pelo crivo da discussão técnica, baseado numa suposta capacidade do
cidadão médio de avaliar evidências científicas de uma área que ele desconhece,
é intelectualmente desonesto e socialmente desastroso.
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