O Globo
Afere-se o grau de degradação da República
entre nós — infecção agravada sob o populismo de Bolsonaro — tomando o pulso do
organismo capaz de produzir a baixaria em que rasteja a indicação de André
Mendonça ao Supremo. Um caso em que todos os agentes, cada um em sua disfunção,
têm posições e posturas equivocadas; todos, no entanto, certos uns sobre os
outros.
Davi Alcolumbre, por exemplo. O símbolo de
que mudança — renovação — não é qualidade per se. Ex-presidente do Senado, cargo a que foi eleito
como representante do que seria a nova política — para derrotar Renan
Calheiros, a velha. Aí está, o novo. Comanda hoje a Comissão de Constituição e
Justiça daquela Casa legislativa, condição desde a qual, como um dono de
repartição consciente dos próprios direitos, controla a agenda de sabatinas e
não marca a de Mendonça — motivo por que tem sido atacado, acusado de
chantagem, pelo bolsonarismo, ao que reagiu nos seguintes termos:
— Agridem minha religião, acusam-me de
intolerância religiosa, atacam minha família, acusam-me de interesses pessoais
fantasiosos. Querem transformar a legítima autonomia do presidente da CCJ em
ato político e guerra religiosa.
Intolerância religiosa!
Chegou-se à altura do buraco, ainda muito a descer, em que as pelejas por uma cadeira em corte constitucional converteram-se em “guerra religiosa” — contribuição particular de Bolsonaro, com sua promessa de ministro “terrivelmente evangélico”, a essa vala. (Saudade do tempo em que, por um assento no STF, beijavam-se os pés de primeira-dama; sem precisar curvar o Planalto a um jim-jones da Penha.) Voltaremos a esse ponto.
Antes, será preciso analisar o método
vitimista de Alcolumbre, o dos “interesses pessoais fantasiosos”. É-lhe
prerrogativa marcar (ou não marcar) sabatina; sendo uma obviedade que não
obstruiria o trânsito assim, há três meses, sem o aval de significativo
conjunto de pares. Alcolumbre, que não está sozinho, tem a prerrogativa de se
omitir, mesmo ante outra prerrogativa, a do presidente da República, de indicar
nomes ao STF. A omissão é mensagem política. Faz carga. No caso, para forçar a
desistência. De Mendonça ou de Bolsonaro. O impasse é do jogo.
O exercício da autonomia pelo presidente da
CCJ é ato político. Nisso não vai qualquer problema intrínseco. A questão é
outra. O senador não segura a submissão de Mendonça ao Senado para proteger “a
legítima autonomia do presidente da CCJ”. Não é uma batalha em defesa da
independência do Congresso, nem contra o aparelhamento bolsonarista das
instituições, ou não teriam reconduzido Augusto Aras à PGR.
Por que, então, a segura? Bolsonaro já
explicou: “[Alcolumbre] Teve
tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não quer
o André Mendonça”.
O presidente da República — com sua
objetividade de autocrata — é transparente sobre os orçamentos secretos. Rei
morto, rei posto. Enquanto presidiu o Senado, Alcolumbre “teve tudo o que foi
possível” e não criou embaraços. Era sócio. Ao passar a cadeira, perdeu graças.
Graças jamais fantasiosas. E decerto terá sido traído por Bolsonaro, notório
descumpridor de acordos. A razão por que estica a corda. Por interesses
pessoais.
É em nome disso, para fazer barganha, que
Davi Alcolumbre exerce — perverte, privatiza — uma prerrogativa, músculo do
equilíbrio republicano, do Senado Federal.
É porque Bolsonaro transformou o processo
de validação de um indicado a ministro do Supremo em pilar de sua parceria com
empresas evangélicas — em base para revalidação de apoio à campanha pela
reeleição — que Alcolumbre se sente à vontade para falar em “guerra religiosa”.
Porque o presidente da República nomeou Silas Malafaia a autoridade depuradora
sobre quem tenha a condição de notória terribilidade evangélica.
Empoderado, o pastor — o verdadeiro Posto
Ipiranga — deu a letra, referindo-se a Ciro Nogueira e outros fabios-farias:
“Estão pensando que vão chegar pro presidente com um nome qualquer, mas o
presidente vai perguntar pra gente. E vamos dizer: ‘não, não reconhecemos esse
cara’.”.
Malafaia dá aula sobre divisão de poderes
na república bolsonarista, inclusive ao registrar a premissa para a harmonia do
arranjo, a ignorância de Bolsonaro: “Não escolhemos André Mendonça. Não somos
nós, ministros evangélicos, que vamos escolher ministro. A única coisa é que o
presidente vai perguntar se o camarada é terrivelmente evangélico ou não,
porque ele não tem ideia. Não adianta esses caras armarem alguma coisa, dizendo
que João ou Manoel, ou sei lá quem, é terrivelmente evangélico, que nós vamos
dizer ao presidente sim ou não”.
É um esculacho.
Eis a República entre nós: Alcolumbre, alvo
de “intolerância religiosa”, não agenda a sabatina porque perdeu boquinha;
Bolsonaro, o que “não tem ideia”, reage acusando Alcolumbre de reclamar de
barriga cheia; Silas “não escolhemos ministro” Malafaia ataca graúdos (de súbito
dóceis) do Centrão para reivindicar a propriedade evangélica da cadeira vaga no
STF; e o futuro de André Mendonça como membro do tribunal constitucional
brasileiro depende de tudo menos da avaliação sobre se estará à altura de
integrar o Supremo aquele que recorreu à Lei de Segurança Nacional para
intimidar adversários do presidente.
Fosse Mendonça afinal sabatinado, quem sabe um senador governista pudesse defendê-lo lembrando que — antes, contra os inimigos do STF — Dias Toffoli e Alexandre de Moraes fizeram o mesmo. Hein? Saudade daquelas sabatinas cínicas.
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