terça-feira, 19 de outubro de 2021

Carlos Andreazza - A República de Bolsonaro, Alcolumbre e Malafaia

O Globo

Afere-se o grau de degradação da República entre nós — infecção agravada sob o populismo de Bolsonaro — tomando o pulso do organismo capaz de produzir a baixaria em que rasteja a indicação de André Mendonça ao Supremo. Um caso em que todos os agentes, cada um em sua disfunção, têm posições e posturas equivocadas; todos, no entanto, certos uns sobre os outros.

Davi Alcolumbre, por exemplo. O símbolo de que mudança — renovação — não é qualidade per se. Ex-presidente do Senado, cargo a que foi eleito como representante do que seria a nova política — para derrotar Renan Calheiros, a velha. Aí está, o novo. Comanda hoje a Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa legislativa, condição desde a qual, como um dono de repartição consciente dos próprios direitos, controla a agenda de sabatinas e não marca a de Mendonça — motivo por que tem sido atacado, acusado de chantagem, pelo bolsonarismo, ao que reagiu nos seguintes termos:

— Agridem minha religião, acusam-me de intolerância religiosa, atacam minha família, acusam-me de interesses pessoais fantasiosos. Querem transformar a legítima autonomia do presidente da CCJ em ato político e guerra religiosa.

Intolerância religiosa!

Chegou-se à altura do buraco, ainda muito a descer, em que as pelejas por uma cadeira em corte constitucional converteram-se em “guerra religiosa” — contribuição particular de Bolsonaro, com sua promessa de ministro “terrivelmente evangélico”, a essa vala. (Saudade do tempo em que, por um assento no STF, beijavam-se os pés de primeira-dama; sem precisar curvar o Planalto a um jim-jones da Penha.) Voltaremos a esse ponto.

Antes, será preciso analisar o método vitimista de Alcolumbre, o dos “interesses pessoais fantasiosos”. É-lhe prerrogativa marcar (ou não marcar) sabatina; sendo uma obviedade que não obstruiria o trânsito assim, há três meses, sem o aval de significativo conjunto de pares. Alcolumbre, que não está sozinho, tem a prerrogativa de se omitir, mesmo ante outra prerrogativa, a do presidente da República, de indicar nomes ao STF. A omissão é mensagem política. Faz carga. No caso, para forçar a desistência. De Mendonça ou de Bolsonaro. O impasse é do jogo.

O exercício da autonomia pelo presidente da CCJ é ato político. Nisso não vai qualquer problema intrínseco. A questão é outra. O senador não segura a submissão de Mendonça ao Senado para proteger “a legítima autonomia do presidente da CCJ”. Não é uma batalha em defesa da independência do Congresso, nem contra o aparelhamento bolsonarista das instituições, ou não teriam reconduzido Augusto Aras à PGR.

Por que, então, a segura? Bolsonaro já explicou: “[Alcolumbre] Teve tudo o que foi possível durante os dois anos comigo e, de repente, ele não quer o André Mendonça”.

O presidente da República — com sua objetividade de autocrata — é transparente sobre os orçamentos secretos. Rei morto, rei posto. Enquanto presidiu o Senado, Alcolumbre “teve tudo o que foi possível” e não criou embaraços. Era sócio. Ao passar a cadeira, perdeu graças. Graças jamais fantasiosas. E decerto terá sido traído por Bolsonaro, notório descumpridor de acordos. A razão por que estica a corda. Por interesses pessoais.

É em nome disso, para fazer barganha, que Davi Alcolumbre exerce — perverte, privatiza — uma prerrogativa, músculo do equilíbrio republicano, do Senado Federal.

É porque Bolsonaro transformou o processo de validação de um indicado a ministro do Supremo em pilar de sua parceria com empresas evangélicas — em base para revalidação de apoio à campanha pela reeleição — que Alcolumbre se sente à vontade para falar em “guerra religiosa”. Porque o presidente da República nomeou Silas Malafaia a autoridade depuradora sobre quem tenha a condição de notória terribilidade evangélica.

Empoderado, o pastor — o verdadeiro Posto Ipiranga — deu a letra, referindo-se a Ciro Nogueira e outros fabios-farias: “Estão pensando que vão chegar pro presidente com um nome qualquer, mas o presidente vai perguntar pra gente. E vamos dizer: ‘não, não reconhecemos esse cara’.”.

Malafaia dá aula sobre divisão de poderes na república bolsonarista, inclusive ao registrar a premissa para a harmonia do arranjo, a ignorância de Bolsonaro: “Não escolhemos André Mendonça. Não somos nós, ministros evangélicos, que vamos escolher ministro. A única coisa é que o presidente vai perguntar se o camarada é terrivelmente evangélico ou não, porque ele não tem ideia. Não adianta esses caras armarem alguma coisa, dizendo que João ou Manoel, ou sei lá quem, é terrivelmente evangélico, que nós vamos dizer ao presidente sim ou não”.

É um esculacho.

Eis a República entre nós: Alcolumbre, alvo de “intolerância religiosa”, não agenda a sabatina porque perdeu boquinha; Bolsonaro, o que “não tem ideia”, reage acusando Alcolumbre de reclamar de barriga cheia; Silas “não escolhemos ministro” Malafaia ataca graúdos (de súbito dóceis) do Centrão para reivindicar a propriedade evangélica da cadeira vaga no STF; e o futuro de André Mendonça como membro do tribunal constitucional brasileiro depende de tudo menos da avaliação sobre se estará à altura de integrar o Supremo aquele que recorreu à Lei de Segurança Nacional para intimidar adversários do presidente.

Fosse Mendonça afinal sabatinado, quem sabe um senador governista pudesse defendê-lo lembrando que — antes, contra os inimigos do STF — Dias Toffoli e Alexandre de Moraes fizeram o mesmo. Hein? Saudade daquelas sabatinas cínicas.

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