O Estado de S. Paulo
O Brasil precisa de normalidade, a vida comum das ações e emoções verdadeiras
O mundo está cheio de cretinos e este
número aumenta quanto mais se afasta de Montana. Se a piada do Velho Oeste
norteamericano se aproximar do Brasil, este número também aumenta. Feliz,
realizada, rica, suspensa acima da terra e livre de todas as leis, a política
brasileira dominou os ambientes onde cada um só cuida de si. É como obra de
arte que, para ser admirada, não pode ser compreendida.
O deslumbramento com o open tudo das engenhocas digitais, o liberalismo fora da costa à moda dos corsários, o bilionário de aplicativo, a tecnologia sem ciência a serviço da agressividade, a reforma que deixa restos do Estado patrimonial dispensado de obedecer às leis, a autarquia estatal milionária dos partidos políticos. Tudo sob gestão política e judicial oficiais e sua incapacidade de dizer não a não ter direitos. Tal beatitude estabeleceu esta forma de amizade com o cretinismo sem fronteira e noção de perigo.
A palavra “indefensável” saiu do
vocabulário quando a elite dos Três Poderes regulou sua conduta por princípios
próprios. O indesejável tornou-se irredutível e fez ruir o suporte que sustenta
a admiração por um ideal na política.
A crise de recato que vivemos – a confusão
entre conectar e conhecer, clicar e conversar, paraíso liberal e fiscal,
informação e privilégio, somada à moral como prótese removível – envolve hoje
as pessoas e as instituições que mais precisam de mudar, mas não aceitam
mudança. Os que têm o poder de falar em nome de outros e se oferecem para ser
admirados são os que mais andam enganando o Brasil. Por culpa deles todas as
memórias estão virando uma coisa só. A de um país da elite errada e do legal
indefensável.
Não funcionamos por princípios gerais de
nação. E a administração pública parece dizer para as pessoas comuns relax, há
outra maneira de viver no Estado. O responsável pela economia que investe fora
do Brasil deveria se afastar da sua função. Como o magistrado na ativa que
cobra por palestra sobre o que faz para instituição do próprio Estado deveria
considerar pilhagem o honorário. Como parlamentar que forma o patrimônio da
família com salário de seus funcionários. Ou ministro sem orçamento, que não
pede para sair. Sempre foi assim, todos são assim. Não são piratas. É impossível
desenrascar-se de vulgaridade tão trivial que é a benevolência do povo com o
espírito de corsário de mandachuva brasileiro.
Com o discernimento embotado sobre a
responsabilidade dos heróis atuais, melhor não apostar em outro funcionamento
da política. A insatisfação do desejo que começa a se manifestar ainda não é o
desejo de outra coisa desconhecida. Melhor não arrastar tudo para a psicologia
ou a ideologia dos dois uns que se opõem. O caminho mais fácil na vida nem
sempre é o melhor.
É o labirinto sem centro que faz os
brasileiros indiferentes, confusos ou crédulos. Falta um líder daqueles a quem
a prosperidade legítima dos outros não incomoda. Felizmente, é possível
perceber que a espécie humana tem um secreto brasileiro que se fez, por
discrição e cansaço, inútil à política. É a pessoa tranquila no cumprimento
usual do dever, legal, ajuizada, humorada, livre, não se entusiasma com a
crítica fácil interessada no sofrimento humano. Nem sai por aí na televisão
enfiando a carapuça em uns e outros.
O brasileiro inútil presume a
responsabilidade coletiva de todos pelo fracasso das nações. Ele sabe que
muitos que vivem crises de gratificação em política normalmente são os
responsáveis pela própria frustração.
Estamos, outra vez, às vésperas de uma
eleição sem desassossego, charme, cuidado, com muitos engodos e suspiros. O
real verdadeiro que é a felicidade humana não está em nenhum aplicativo ou rede
social. Se a eleição for uma disputa de algoritmo, melhor se abster. É preciso
reinventar a eleição, os partidos e seus candidatos, sabendo o que nos é
permitido esperar. Uma coisa é certa, o Brasil não precisa de presidente
personal. Menos ainda de quem acha que tudo é política, tudo é educável, tudo é
diagnóstico, polícia e juiz. O Brasil precisa de água no seu pomar, normalidade
sem fatos extraordinários, a vida comum das ações e emoções verdadeiras.
Todos os conectados já foram computados. É
hora de buscar a maioria desbussolada, antipáticos a personalidades coativas
que gostam de gente treinada, obediente e previsível. Alguém capaz de falar
para os inúteis, sem obrigá-los a responder ou agir no sentido enfático como um
exército de ativistas.
A honestidade no Brasil é um hábito, mais
do que uma prática. Como se a ética fosse um dilema, não conduta. Os ligados
acham que os bons são bobos por preferirem inteligência a maldade. Deixe estar.
Quem conseguir entender a política verá que
os fatos e eventos que a envolvem são apenas interesse, ilustrações dos
princípios dos próprios políticos. Não há mal nisso, é uma função necessária e
relevante. O problema é quando por trás dos fatos não se encontram princípios.
Tem sido a sina brasileira: viver o ridículo e a chateação de ser governado por
vitorioso que despertou esperança e não se comportou à altura.
*Sociólogo
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