O Estado de S. Paulo
Dificuldades e desgraças costumam ocorrer
às vésperas de grandes mudanças
O fim dos trabalhos da CPI da Covid demonstra
a vitalidade do poder Legislativo e coincide, acidentalmente, com a despedida
desta colunista dos leitores do Estadão, o que faço agora. Os dois
registros são apenas coincidência. Comecemos pelo importante resultado das
investigações dos senadores. Estão apontando, com clareza, a culpa original
pela proporção do desastre brasileiro no enfrentamento da pandemia: uma
combinação de ignorância e perversidade do presidente Jair Bolsonaro.
Tal comportamento teria custado mais do que as 600 mil vidas perdidas até agora não fosse a reação firme de duas instituições. Primeiro, e desde sempre, o Supremo Tribunal Federal, que com suas decisões impôs limites ao desvario do presidente da República. Segundo, a entrada em cena da CPI do Senado, que utilizou os seus instrumentos especiais para localizar, medir e denunciar o responsável.
A ignorância, mais que tudo – e nesse tudo
há, além da perversidade, o voluntarismo e o reacionarismo –, foi o fator
determinante nas ações e omissões do presidente. Em Bolsonaro a CPI identificou
a autoria de dezenas de crimes a serem denunciados e processados. A culpa
política, no entanto, persistirá, impune, até que falem as urnas.
O presidente jamais recorreu à inteligência universitária ou à elite científica, como fizeram todos os países devastados pela pandemia. Bolsonaro contribuiu para aumentar a letalidade da doença. A pretexto de privilegiar a economia, boicotou medidas de proteção, ironizando quem se preservou e quem morreu. Sem planos para se contrapor aos que tentou anular, apenas buscou aplausos dos que aceitam suas doses diárias de grosserias. A crueldade, nele, assumiu diferentes formas. A ignorância, no entanto, se sobrepôs a tudo. Transcendeu.
Ao investigar os crimes do presidente a CPI
esbarrou em verdadeiros achados, muitos deles entrelaçados ao governo sob
investigação. Descobriu histórias macabras, como a da Prevent Senior; revelou o
modelo de operação da corrupção com a marca governo Bolsonaro; radiografou a
primária gestão Eduardo
Pazuello no Ministério da Saúde; apontou a experiência genocida
de Manaus.
Já o STF, com decisões pontuais e movido
pelo clamor da sociedade e pujança da imprensa, impôs, ao longo da
investigação, sua autoridade constitucional. Desfez a conspiração presidencial
contra o isolamento social. Determinou a elaboração de um plano nacional de
imunização, deixando ao presidente da República o troféu vergonhoso de promotor
de aglomerações e negacionista da vacina. Decisões do Supremo permitiram o
orçamento de guerra e facilitaram a aprovação de medidas provisórias,
estendendo a mão também ao Executivo.
A justiça virou bode expiatório, é verdade,
porque, além da pandemia, representou a sociedade ofendida e humilhada em
outras investigações que inibiram o golpismo do governo. Sejam as fake news, os
atos antidemocráticos, a ameaça de cancelar as eleições e descumprir decisões
judiciais.
Dificuldades e desgraças, como as reveladas
na CPI e combatidas pelo STF, costumam ocorrer às vésperas de grandes mudanças.
As eleições operam prodígios, substituindo por otimismo os recentes tempos de
dor e tristeza.
Durante os últimos dois anos, fontes de
diferentes tendências partilharam informações e qualificaram esta coluna de
análise política que agora deixo por imposição de outras prioridades pessoais.
Sou grata aos jornalistas João Caminoto e Antonio Carlos Pereira, que me
proporcionaram a volta a esta casa, onde comecei minha vida profissional. E,
assim, ao completar, com este ciclo extra, 53 anos nesta extraordinária
profissão de jornalista. Os leitores e fontes me farão mais falta do que eu a
eles.
PS. Mais uma coincidência a registrar:
Despeço-me no momento em que o Estadão passa por mudanças gráficas,
prazer que só vou experimentar como leitora. Que seja um sucesso.
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